Triste fim de um atorzinho chinfrim
Logo o metido a intelectual, a citar Nietzsche e Deleuze em qualquer discussão de bar. Aquele que lia apenas Proust, Joyce, Dostoiévski, Thomas Mann… Pois é, o combatente das telenovelas e dos filmes hollywoodianos se vê agora num desses clichês tão exaustivamente empregados na indústria do entretenimento. Tento achar graça.
Vejo o sangue escorrer por entre meus dedos. Essa mão não consegue mais estancar o buraco causado por uma bala, vinda de sei lá onde, que encontrou abrigo em meu estômago. E a mulher dos meus sonhos alisa meus cabelos, diz palavras de otimismo e não se importa com a sujeira que o sangue faz em seu belo vestido azul com estampa de florzinhas. Acho que são florzinhas. Talvez sejam apenas bolinhas brancas. Mancha de sangue é difícil de sair.
O resgate já vem. Calma que o resgate já vem. Agüenta só mais um pouco, por favor. Quanto mais eu ouço a voz daquela mulher de cabelos lisos e castanhos, olhos negros e pele morena, mais eu penso no roteiro de um filme detestável. “Esses últimos minutos valeram por todo o resto…” Tusso fundo para não me desesperar.
Será que eu realmente me declarei a ela? Será que depois de minha confissão amorosa, ela realmente me ajudou a ficar sentado por alguns instantes e colou seus lábios em minha boca salgada? Ou eu sonhei com tudo isso? Ou eu desejei que meu fim fosse “emocionante”? Acho que, no final, tudo se embaralha.
Jamais saberei as respostas exatas. A não ser que eu peça para ela me beijar. Mulher nenhuma negaria esse desejo a um pobre moribundo. Tenho vergonha. Não posso me aproveitar de uma situação como essa. Veja você, eu aqui, no asfalto, manchando o vestido da mulher que eu amo, com uma bala na barriga. É foda se valer desse subterfúgio tão baixo. Ora, logo eu irei abaixo de todas as coisas.
Deve ser chato sentirmos alguém morrendo em nossos braços. Logo me vêm milhares de cenas iguais a essa, todas vistas no cinema. Eu olhava para o lado e via alguma companheira verter lágrimas. Confesso, e agora eu posso confessar o que for, que eu também tinha vontade de chorar. Mas era contra os meus princípios. Por isso, seguro ao máximo umas lágrimas traidoras que teimam em abandonar meus olhos. Segure-se firme, seu filho da puta.
Ela acabou de resgatar minhas lágrimas com seus dedos finos. Estaria eu preso dentro de um poema do J. G. de Araújo Jorge? “Esses últimos minutos…” Poderiam ter sido muitos anos se eu tivesse acreditado. Em quê? Não sei. Sei apenas que não acreditei. E aos incrédulos restam os últimos minutos.
Eu não estou preparado espiritualmente para este momento. Isso é uma falha grave no roteiro. Meu avô, por exemplo: sempre foi comunista. Na hora agá, virou um religioso ferrenho. Ele teve a hora agá. E eu? Minutinhos agá? Um agá minúsculo? Em compensação, estou com a mulher que eu amo a me acariciar os cabelos. Bela correção, roteirista. Você pensou rápido. E está de parabéns.
Quando eu era criança, perguntei ao meu pai: em que devem pensar os condenados nos instantes anteriores ao fuzilamento? “Estou fodido”, foi a resposta do velho. Agora eu posso dizer que ele estava certo. Estou irremediavelmente fodido. Claro, em que mais pode pensar alguém que está prestes a morrer fora na própria condição de breve ex-vivo?
Estou fodido. E não sei nem rezar o Pai-Nosso. Momentos humilhantes, momentos sublimes, apenas momentos de uma vida que passa depressa. Depressa demais para seres tão egoístas quanto o Homem. Parece que um pernilongo vive apenas vinte e quatro horas. Nunca vi pernilongos chorarem, ou pedirem a Deus que lhes conceda alguns segundos a mais. E eu? Quero uns minutos a mais? Já posso escutar o barulho das sirenes. Queria dizer àquela mulher que me faz carinho que eu a amo. Há anos que eu a amo. No entanto, as palavras não conseguem escalar minha garganta. Nada sai.
O roteiro segue à risca as normas de um best-seller. Tudo está em seu devido lugar. Uma imagem precisa de tudo aquilo que eu zombei na vida. Agora, parece que o mundo zomba de mim. Não importa. Minha amada alisa os meus cabelos e eu digo que esses últimos minutos valeram por toda a vida. É a fala que me cabe no momento. Sou um ator disciplinado, que segue as falas do roteiro com precisão. Tento, também, fazer aquelas expressões que aprendi num curso vagabundo de teatro que fiz na adolescência. Será que estou conseguindo? Acho que sim. Consigo captar a imagem de uma espectadora, uma senhora que observa a cena. Seus olhos estão cheios de lágrimas. Outras pessoas apressam os homens do resgate.
Sou um excelente ator, penso. Sempre fui. Sempre. Mereço ganhar um beijo. Não consigo pedir. Os homens do resgate já me colocaram na maca e eu não vejo mais nada, não sinto mais nada. Não consigo pensar em nada além daquela noite que eu voltei para casa sozinho, embriagado, com uma enorme vontade de me atirar de cima de algum viaduto. Por quê? Porque sou um excelente ator. Odeio ser um excelente ator. Deus, eu não sou um pernilongo. Quero mais um tempo para viver.
Não tenho escolha. E não consigo pedir o beijo. Mas o beijo vem mesmo assim. Estava no roteiro. Minha amada também é uma excelente atriz. E o filme acaba. As pessoas saem eufóricas do cinema, dizendo: é desta vez que um filme nacional leva um Oscar.