sexta-feira, novembro 30, 2007

Doce tédio

Eu sempre me preparei cuidadosamente para os momentos importantes. E as pessoas me diziam que eu estava louca porque, se você perde toda a vida se preparando para os momentos importantes, não dá tempo de eles acontecerem. Percebeu o paradoxo? Mas eu sempre me preparei com toda a cautela que os momentos solenes exigem. Nada de fazer feio diante de uma platéia ávida por presenciar um tropeço histórico. Como existem pessoas invejosas que não podem ver alguém brilhar no lugar delas - essas pessoas são como os planetas: não têm brilho próprio. Seriam os poucos segundos de fama a que eu tenho direito uma enorme farsa?, cheguei a duvidar. Não é fácil manter a fé. O tempo passa a galope enquanto se come um bife à Cavalo, Roberto. Quando vemos, a idade já chegou, sentou-se à mesa sem pedir licença e, após palitar os dentes e limpar as unhas com toda a calma do mundo, convidou-nos para uma partidinha de crapô. E nada de momentos importantes, que eu já estava rezando para que fossem ao menos um. Cheguei a duvidar, a esbravejar com Deus, a pensar que nada de significativo me aconteceria. Toda uma vida nesse mais-ou-menos sem fim? Qual seria o sentido, Roberto? Não poderia ser. Alguns diziam: é por isso que as pessoas se apegam aos gatinhos, ao travesseiro, aos deuses. Você mesmo já me disse isso, naquela sala ali, enquanto eu assistia a "Os incompreendidos", do Truffaut, pela décima quinta vez. Sim, eu já sabia várias falas do filme de cor. Mais que as suas. Você ria de mim e falava que Deus e um bom cobertor numa noite fria eram a mesma coisa, só que o primeiro não trazia o verdadeiro conforto. Pobre de ti. Em breve sofreria com mais um de seus ataques de asma e não seria ao Cobertor que você pediria misericórdia. Você mesmo sempre soube que eu nunca fui religiosa. Nem fiz questão de me casar na igreja. Esqueceu que foi a sua mãe que nos obrigou? Dessas coisas você não se lembrava nunca, não é? Mas eu ia dizer que o problema não está em ser religioso ou não. Está na simplificação exagerada das coisas, meu querido. Você sempre simplificou tudo. Demais. Chegava a irritar qualquer um. Mais que esse seu chulé. Ô, desgraça. Quando pegava chuva então, não havia Cristo que salvasse. Ele que te salve agora, Roberto. Porque eu não podia me privar do meu grande momento. Meu grande momento com você. Juro que nunca havia encostado em uma arma antes. Talvez seja o que as pessoas costumam chamar de sorte de principiante. A sensação? Não sei. Não estou feliz. Talvez você estivese certo quando dizia que nada fazia sentido e que a nossa vida não passava de um entediante período de espera para se transformar em adubo. Você ficou bem, aí, caído, no meio da sala de espera. Com essa cara de apavorado. Nunca vi alguém se apegar tanto ao tédio. Espero que na cadeia exista uma boa biblioteca, e que eles nos deixem assistir a alguns filmes de vez em quando. Pensando bem, melhor ficar só com os livros. Em cadeia de homem só passam aqueles filmes de luta. Em cadeia de mulher, devem passar só essas comédias românticas que você fingia odiar. Dizia que eram um saco mas queria ver todas. Cheguei a imaginar o que você faria se ficasse diante da Meg Ryan. O tempo dela já passou, né? Gwyneth Paltrow também já era? Sei lá. Qualquer uma dessas Gabrielas Duarte hollywoodianas. Bom, agora que meu momento passou, e foi rápido mesmo, devo pedir para que você não fique chateado comigo, Roberto. Esteja você no Céu, incomodando a Jesus e a todos os santos com esse seu maldito chulé, esteja você no Inferno, enrolado em um cobertor velho. Engraçado, eu sempre imaginei o Inferno como algo gélido e solitário. Desculpe, não quero fugir do assunto e nem de minhas responsabilidades. Por isso mesmo, já liguei eu mesma para a polícia. Espero que não me mandem para um manicômio. Devo alertar aos defensores públicos que isso eu não quero. Olha eu fugindo - do assunto e não da cena do crime - de novo. Não fique chateado, porque eu também te perdoei, do fundo do meu coração.

quarta-feira, novembro 28, 2007

Chimbinha

O Lino me mandou um texto muito interessante, escrito pelo Hermano Vianna, sobre o Chimbinha, da banda Calypso. Muito mais que um texto sobre o Chimbinha, o artigo "Isso é Calypso ou A lua não me traiu" é uma aula sobre cultura popular. Ou melhor, é uma aula sobre cultura. Ponto.
Aqui, porém, abro uma nota de rodapé no meio do texto, para fins didáticos: quando eu falar de manifestação cultural, estarei falando de música. (Algumas manifestações artísticas são muito elitistas e dificultam o acesso das camadas mais pobres, o que obrigaria a mudar um pouco o enfoque da presente análise).
Vamos lá: aos preguiçosos internáuticos eu já vou avisando que o texto do link acima é longo, mas só vai tomar dez minutos do seu precioso tempo e, digo, vale a pena. Se você tiver que fazer uma escolha cruel, entre ler as merdas que eu escrevo aqui e essa maravilha escrita pelo Hermano Vianna, não perca tempo: xô, fora daqui; está na hora de ler coisas boas.
Aos insistentes, àqueles que me amam e, é claro, aos meus queridos fantasmas da meia-noite, ouso externar minha opinião sobre o texto do Hermano Vianna. Não falarei especificamente sobre o Chimbinha porque, confesso, nunca escutei a banda Calypso e tenho um gosto musical elitista - garanto que essa afirmação não me orgulha nem um pouco.
Em primeiro lugar, o Hermano Vianna é um estudioso da chamada cultura popular, mais especificamente a musical. Ele sempre se interessou pelas manifestações artísticas que surgem nas periferias como algo "menor" e, depois de passarem pelo crivo da elite intelectual, são classificadas qualitativamente como "boas" ou "ruins".
Mas o Hermano Vianna, como eu disse, é um estudioso. Então, ele sabe que a cultura de qualquer país sempre nasce no chamado populacho. Aqui eu cito Milan Kundera, que além de escritor é músico. Não à toa, Kundera desenvolveu um estilo polifônico de escrita, fortemente influenciado pela linguagem musical, mas isso é outro assunto. Em um de seus livros, se não me engano em "A brincadeira", Kundera refuta a teoria de que a música clássica tenha surgido nos castelos para ganhar sua origem popular através dos camponeses que trabalhavam para os nobres. Nada disso. Essa é a versão dos "vencedores". A música clássica, assim como qualquer manifestação cultural (ou musical), nasceu no campesinato, e ganhou o rótulo de clássica depois de ter conquistado os salões da aristocracia.
Pode ter certeza que, um dia, alguma espécie de Noel Rosa da nobreza européia descobriu que, em algum povoado perto de seu lindo castelo, havia um grupo que tocava músicas belíssimas e lá foi beber daquela maravilhosa fonte. É assim que acontecia na Europa há séculos e é assim que acontece em qualquer lugar do mundo. A criação musical está intimamente ligada às dificuldades do dia-a-dia, e é fato que nós da elite não sabemos o que é precisar sobreviver. Acredito que música, no fundo, seja manifestação de sentimentos. Não quero dizer com isso que a burguesia não sente. Muitos, acredito, não sintam mesmo, mas isso também é outro assunto.
No entanto, não dá para comparar a vivência de um simpático menino que nasceu em berço de ouro e teve condições de freqüentar as melhores escolas, para depois estudar música em Berklee, Juilliard ou sei lá onde, com a história de vida de um menino da periferia de Belém, como o Chimbinha, que aprendeu a tocar violão sabe-se lá como e, quando ainda era uma criança, tinha que tocar guitarra em um cabaré pra ajudar os pais em casa. De onde você acha que vai brotar mais emoção?
Se você não acredita que qualquer estilo musical tenha sua origem nas periferias mais recônditas e nos lugarejos mais pobres, basta pesquisar um pouco, e você vai ver que, por trás de uma bossa nova que nasceu numa cobertura da Avenida Atlântica (ou Vieira Souto, sei lá), regada a uísque da melhor qualidade, está o velho samba do morro, exalando muita cerveja e cachaça, de onde músicos maravilhosos como Noel Rosa e, mais tarde, Chico Buarque de Hollanda, se embebedaram até cair. Sobre a influência do jazz? E quem criou o jazz se não os negros norte-americanos que não tinham muitas alegrias na vida além de cantar? Sim, a bossa nova é um dos resultados possíveis da combinação entre os sofrimentos de negros norte-americanos e de negros brasileiros.
Alguém pode dizer que eu estou exagerando. "Não é toda música que nasce nas periferias". Certo, pode até ser. Mas eu garanto que, se alguma música nasce em berço de ouro, logo que ela atingir os ouvidos da periferia, ganhará uma força e um estilo que não possuíam antes.
Já que eu falei em Chico Buarque, não faz muito tempo que, ao ser perguntado sobre movimentos de periferia como o funk e o hip-hop, vistos pela elite em geral como algo horroroso, Chico afirmou algo do tipo: "As músicas que eles fazem têm um discurso muito mais verdadeiro que as músicas que eu faço". Chico me desculparia, porque não foi isso que ele disse, mas o sentido é mais ou menos esse. Afinal, quem tem mais legitimidade pra falar da vida dura do povo, tema tão explorado pelos compositores de todas as classe sociais, senão o próprio povo? Claro que isso não impede ninguém de tentar, mas eu já vou avisando que não é lá muito fácil ser um Chico Buarque - procurem pesquisar, também, o quanto o Chico estudou, penou e pelejou pra poder acordar um dia e dizer, como sugeriu o Ziraldo: "Puta que o pariu: eu sou o Chico Buarque de Hollanda!" (É claro que o Chico nunca fez isso, foi só uma brincadeira do Ziraldo)
Já a Beth Carvalho, em entrevista à revista Carta Capital, que há uns dois anos e meio abordou o tema do "funk proibidão", com muitas letras carregadas de violência, veio com aquele papo manjado de que antes o morro era uma beleza, porque criava o samba; hoje é essa merda. Lamentável uma pessoa como a Beth Carvalho dizer coisas assim, porque pra quem vive no morro, a situação sempre foi "uma merda", e ela ganhou muito dinheiro às custas do talento de gente dos morros cariocas. Se a Beth mereceu eu não discuto, mas que ela faturou, isso é fato. E que ela disse uma asneira isso também é fato, porque ela não tem o direito de julgar dessa maneira tão rasa todo um fenômeno cultural que empolga milhares de pessoas (inclusive da elite da zona sul carioca).
Está certo, eu viajei longe. Comecei a emendar um assunto no outro e acabei não falando do texto do Hermano Vianna. Pois é, a expressão "em primeiro lugar" ficou isolada, lá em cima (nunca fui muito conciso). Mas, na verdade, eu falei sim do texto dele. Ao meu modo, e tenho certeza que o Hermano também me perdoaria se lesse essas minhas bobajadas. O que eu queria, na verdade, era que todos lessem esse texto sobre o Chimbinha, e que todos tentassem ser um pouco mais sinceros com seus gostares musicais. Digo isso porque, nossa mente, eivada de preconceitos e imagens pré-concebidas, já odeia muita coisa por princípio. Não estou pedindo, é claro, pra ninguém passar a gostar de Calypso. Eu mesmo, já disse, nunca parei pra ouvir a banda e estou sempre esperando que a elite intelectual carimbe tudo com o ISO-9000 e sei lá das quantas, pra só depois me permitir a gostar disso e odiar aquilo.
Fico imensamente feliz que existam pessoas como o Hermano Vianna, capazes de ouvir com honestidade e de identificar que o Chimbinha é um grande guitarrista, um músico de mão cheia, e que a voz da Joelma também é muito boa. Fico feliz que uma parte dessa elite intelectual, da qual o próprio Hermano faz parte, está estudando os rumos da nossa sociedade em vez de ficar com esse discurso anti-pirataria patrocinado por grandes gravadoras e repetido exaustivamente em programas como o do Jô Soares.
Se nós burgueses temos acesso a tantas informações que muita gente da periferia nem sonha que existe, que nós façamos bom uso desses instrumentos, sem esquecer de dar o crédito a quem realmente merece. É o que o Hermano Vianna faz. É o que o meu ex-professor Walter Garcia faz. É o que também faz Carlos Sandroni, autor do excelente livro "Feitiço decente", um estudo esclarecedor sobre as origens do samba.

terça-feira, novembro 27, 2007

Viva a democracia

Dia sim, dia sim, tem uma manifestação aqui em Brasília. Perto dos agrupamentos na Esplanada dos Ministérios, as gritarias da Avenida Paulista são fichinha. Nesse pitoresco pomar de reclamações, dá de tudo. Outro dia mesmo, a Juventude Tucana, que eu nem sabia que existia, resolveu fazer um protesto contra o Renan Calheiros. Acho que nem eles sabem que existem. Juntaram umas trinta pessoas perto do Congresso Nacional, enquanto um cara gritava ao microfone: Cadê o pessoal do Nordeste? Ouvia-se, bem ao longe, um êêêê. O mesmo se repetiu com as outras regiões. Mas acho que pra um grupo que não existe, o sucesso foi absoluto. Todos ficaram felizes. Pra fechar com chave de ouro, puseram alguém cantando um funk e gritando: "Ão-ão-ão, Lula fanfarrão!" É, viva a democracia.
Agora tem mais um grupo passando ao longe com umas buzininhas. Acho que também pedem pela saída do Renan. É, viva a democracia. E eu só fico olhando praquele gramadão e me dá a maior vontade de esticar uma toalha lá e dormir a tarde inteira. Mas não. Logo viria mais um grupelho cantando aquela música: "Você pagou com traição/ A quem sempre lhe deu a mão". Viva a democracia, mas não dá pra ser com um pouco mais de criatividade? Ou então me deixa fingir que eu estou trabalhando, pô.

segunda-feira, novembro 26, 2007

Já dizia o poeta

Ómi rapáis. Como tem flamenguista nesta terra. Oceis vão me descurpá, mas hoje eu tô de saco na lua, apesar de estar chovendo a cântaros. Ah, não. Agora parou. A chuva chegou, me pegou no meio do caminho entre o Ministério da Previdência e a Câmara dos Deputados, molhou toda a barra da minha calça e foi-se embora. Maledeta.
Além de melancias ao sol,
O que vejo à janela?
Que não sou poeta,
Não sou jornaleiro,
Não sou jornalista;
Sou um escrevinhadeiro
paulista].