sexta-feira, outubro 15, 2010

Refúgio

Hoje tentaram me censurar. Foi logo que eu acordei. Tentaram me censurar logo que eu acordei e abri a janela. Depois tentaram me censurar de novo. Na saída do metrô. E assim, sucessivas vezes, ao longo do dia.
Estou ficando cansado disso. Não posso ter minha liberdade de expressão tolhida assim, tantas vezes, todos os dias. Não está certo. Fica aqui o meu protesto, porque isso que está acontecendo comigo pode acontecer também com você, e com qualquer um. O vírus da censura se alastra rapidamente, mais que a moléstia dos cachorros doidos.
Antes de ter acontecido comigo, começou com os comentários. Eu ouvia falar. E não dava bola. Eu pensava: isso jamais vai acontecer comigo, porque eu me cuido. Isso não é da minha conta, só deve acontecer com esses subversivos, com esses homossexuais, com esses comunistas, com esses promíscuos. Mas a coisa foi se alastrando. E se aproximando.
Hoje, estou completamente infectado pela censura. Não posso fazer nada e já sou arrebatado por alguma tarja preta, ou por um som de pííííííí.
É por isso que eu gosto deste lugar. Este lugar é um lugar onde ainda posso me refugiar contra a censura. Aqui posso falar o que quiser, posso cantar as músicas do Wando, posso torcer pelo Botafogo, posso tomar leite integral, tipo A mesmo, na veia.
Ah, como é bom ficar aqui, olhando para o nada, completamente livre de preocupações. Posso pensar em qualquer coisa, porque a censura é tão ardilosa que ela nos persegue até em pensamento. Pensa, por exemplo, em comer a mulher do seu melhor amigo. Ah, ela é jeitosa e tudo, tem um sorriso e, opa. Não pode, compadre. E tem coisa pior, que o Freud andou falando e pegou mal pra ele. Censuraram ele lá atrás.
Mas eu achava que o Freud era meio homossexual, meio promíscuo e até meio comunista, então tinha sido por isso que censuraram ele. Não se fala assim na mãe dos outros impunemente. Pois eu estava errado e a censura se espalhou rapidamente. Hoje, tudo, absolutamente tudo e todos são censurados.
Eu mesmo, ao acordar, ao sair do metrô, ao pedir um cafezinho. Não sei se vou aguentar essa situação. Acho que os censores vão vencer a batalha e vocês vão acabar encontrando o meu corpo jogado por uma dessas estradas perdidas. E vão dizer que foi suicídio. Mas aqui eu posso revelar a vocês: não foi suicídio, não! Eu jamais me suicidaria.
O suicídio é uma coisa de tremendo mau gosto. Não se faz isso com as pessoas. Você vai lá, sossegado, dar uma mijadinha, e encontra um cabra degolado no banheiro. Se ele foi morto, a culpa não é dele. Se é acidente, também não, apesar de que alguém ser degolado por acidente no banheiro, haja barbeiragem na hora de fazer a barba. Agora, se o cabra, por conta própria, fez um troço desses, tenha dó.
Os judeus estão certos. Suicida tem que ser banido. Suicida e homossexual e comunista e subversivo e gremista. É, não gosto de gremista. E aqui não podem me censurar, porque eu falo mesmo o que eu quiser e se não gostou o problema é de quem não gostou.
Sou católico, conservador, de classe média e, se dependesse de mim, nada disso seria isso aí. Só não tolero a censura. Se alguém não tolera as contradições que vá para o diabo. Não sei mais o que digo, meu Deus. Até aqui a censura chegou. Filha da...
(Esta é uma obra de ficção. O autor não tem nada contra homossexuais ou comunistas ou gremistas ou bebedores de leite desnatado)

quinta-feira, outubro 14, 2010

Lançamento do livro do Thi

Já dizia a escritora Ana Maria Machado que, se a criança for bem estimulada, será impossível que ela não goste de ler, porque a leitura permite a ela conhecer um novo mundo. Por isso, dou meus parabéns ao meu grande amigo, o escritor Thiago Iacocca, por ter tido a iniciativa de escrever um livro infantil.

Se alguém esbarrar neste espaço, meio sem querer, apareça, meio sem querer, na Livraria da Vila (Rua Fradique Coutinho, 915 - Vila Madalena), no dia 21 de outubro, a partir das 18h30.

Não que isso faça qualquer diferença, mas estarei lá.

quarta-feira, outubro 13, 2010

O Chicólatra

Atrasado para o dentista, Marques entrou no prédio correndo e, esbaforido, conseguiu pegar carona com o elevador que estava para subir. Ainda um pouco desconjuntado e sem fôlego, olhou para o relógio e, em seguida, para o homem com quem dividia aquele espaço de menos de quatro metros quadrados.
“Puta que me pariu”, pensou. “Puta que me pariu”, repetiu mentalmente. Ele, Carlos Marques da Costa, um ninguém, um bosta, estava dividindo o elevador com Chico Buarque de Hollanda. Sim, estava ali, ao seu lado, o maior ídolo de sua vida. Só os dois naquele pequeno espaço, respirando o mesmo oxigênio. Marques precisava fazer alguma coisa. Ele precisava dizer alguma coisa. Senão, o que diriam as pessoas quando ele contasse que esteve no elevador com Chico Buarque de Hollanda!
As pessoas iam querer saber o que o Marques fizera, o que o Marques dissera. Ele tinha que dizer algo. Só não podia dizer as mesmas coisas que todos diziam ao Chico todos os dias, várias vezes. Nada de: sou seu fã, tenho todos os seus discos, li todas as suas peças e todos os seus livros. Pensou, então, em assobiar a melodia de alguma música do próprio Chico. “Vai ser engraçado”, pensou. “Parece que dizes…”, começou a cantarolar mentalmente. Não, não vai ser engraçado. Vai ser ridículo, concluiu rapidamente.
Já estavam no quarto andar. E nada. Marques não fazia nada além de olhar para o próprio sapato. Depois de muito se esforçar, ele teve uma idéia. Ele pensou em falar sobre a coincidência de nomes entre ele, Chico Buarque de Hollanda, e seu irmão, Francisco Guilherme da Costa. Seu irmão odiava aquele nome. Isso sim seria ridículo. Isso não era algo para dizer a ninguém, muito menos ao Chico Buarque, pelo amor de Deus.
Pensou, então, lá pelo sexto andar, em dizer sobre outra coincidência. “O meu pai era paulista, meu avô pernambucano, o meu bisavô mineiro, meu tataravô baiano”. Não, na verdade, seu pai era paulista, mas seu avô era baiano. O bisavô também era baiano e o tataravô era português. Ora, mas aquele podia ser um assunto para abrir com o Chico. Claro. Marques chegou até a sorrir, mas logo concluiu que ele seria incapaz de mentir para o Chico Buarque. É, seria quase herético.
Marques precisava dizer algo inteligente e, ao mesmo tempo, inusitado. Algo que divertisse o Chico Buarque e que fizesse com que ele, Chico Buarque, contasse aos seus amigos. Marques imaginou o Chico Buarque telefonando ao Edu Lobo, ou passando um e-mail ao Francis Hime, ou visitando o túmulo de Tom Jobim, a dizer: “Hoje me aconteceu algo interessante. Eu conheci um sujeito no elevador, um sujeito aparentemente comum, que me disse umas palavras tão inteligentes. E eu que estou acostumado com aquela velha ladainha de sempre: sou seu fã, li todas as suas peças e todos os seus livros”.
Finalmente. Finalmente, pensaria Chico Buarque, alguém dissera algo inteligente e criativo. Algo que merecia ser dito até em uma música. Sim, ele, Marques, emprestaria aquelas palavras ao Chico Buarque com o maior prazer. Seria uma honra. É, mas o nosso amigo Marques não sabia quais seriam aquelas palavras. "Nunca fiz samba, nunca vi Maria", constatou, levemente desapontado. E já estavam tão próximos do décimo quarto andar. Marques, então, se conformou, porque ele não seria capaz de dizer nada ao Chico Buarque, seu maior ídolo. Ele poderia dizer algo ao Toquinho, de quem gostava muito, ou até ao Paulinho da Viola. Mas ao Chico Buarque não dava para dizer nada.
Chegaram, então, ao décimo quarto andar, onde desceria o Chico Buarque. Marques continuaria, acompanhado de sua miséria, até o décimo oitavo. E, como se não bastasse, sofreria na cadeira de um dentista por mais uma hora. E o pior: enquanto o dentista extraísse aquela cárie, surgiriam mil idéias de assuntos que o Marques podia ter dito ao Chico. Nem que fosse algo do tipo: acho que o Fluzão, com o Muricy, agora vai.
A porta do elevador, enfim, se abriu, lentamente. Era o fim da jornada. O fim da possibilidade de ficar amigo do Chico Buarque de Hollanda, ainda que por um minuto. É óbvio que o Marques jamais teria aquela oportunidade novamente. Ainda mais, para ficar sozinho, no mesmo ambiente, com seu maior ídolo, com a pessoa com quem ele gostaria de conversar por horas a fio, tomando uca, com açúcar, cumbuca de gelo e limão.
Chico Buarque já estava fora do elevador. Marques ainda olhava para o próprio sapato. “Sou um rato”, pensava. Era a única coisa em que conseguia pensar, além de que precisava comprar um novo par de sapatos, urgentemente. Finalmente, Marques da Costa tirou os olhos do sapato para mirá-los nas costas do Chico Buarque, costas estas que iam ficando cada vez mais estreitas, conforme a porta do elevador se fechava.
Foi quando, segundos antes de a porta do elevador se fechar por completo, Marques, sem saber como, falou: “Minha mulher era louca pra dar pra você”.