sexta-feira, novembro 24, 2006

Miseráveis Nada Miseráveis

Ontem nós fomos à feira de livros da USP e, aqui, começo com uma informação complementar: o horário de funcionamento é das 9h às 21h (hoje é o último dia); e uma errata: não é esquema liquidação, as editoras de São Paulo estão repondo o estoque de um dia para o outro. Quem me passou essa informação foi o Douglas, que trabalha na editora Terceiro Nome.

Os preços valem mesmo a pena. O foda é que nós fomos à noite, que é o horário mais cheio. Em volta dos stands, principalmente da 34 e da Cosac, a galera disputa um lugarzinho a tapa. E os livros vão acabando. Depois de sofrer agressões semelhantes às que sofremos dentro de um Socorro-Lapa às seis da tarde, eu consegui uma brechinha pra olhar os livros da Cosac. Eis que vi aquela edição bonita d'Os Miseráveis, que vem dentro de uma caixa, em dois volumes. Perguntei quanto custava e a mulher disse: R$ 62,50. Eu acho que já vi esse livro à venda por R$ 150,00 (o mesmo preço da Playboy da Xuxa). Só vi dois exemplares expostos, então tratei de pegar um.

A Vivi abriu a caixa, que vinha embalada num saco plástico, enquanto eu estava me aliviando de umas cargas extras dentro do banheiro. De lá eu escutei ela exclamar: que edição maravilhosa! A Cosac é uma editora famosa por caprichar no acabamento dos livros, e essa edição d'Os Miseráveis não tem nada de miserável. Não estou com o livro em mãos, então, não ousarei descrevê-lo, mas posso dizer que é muito bonito.

Se vocês correrem lá hoje, acotovelarem umas cinco ou seis pessoas e agüentarem agressões alheias, como pisões e ombradas, eu recomendo que comprem essa edição. Além de ser um clássico (do Vitor Hugo eu li apenas "O último dia de um condenado" e gostei muito), é um exemplar caprichadíssimo, que já valeria como peça decorativa - e por uma pechincha. Parabéns ao pessoal da Cosac.

quinta-feira, novembro 23, 2006

Tradição

Meu grande amigo Guilherme, já levemente alcoolizado, deixou um recado na caixa-postal da Vivi no último domingo que merece comentários. Estou escrevendo sobre isso hoje porque só escutei a mensagem ontem à noite.

Eu sei que o Gui não lerá estas minhas parcas palavras, porque ele é menos afeito a outlúkis, orcútis e blóguis do que eu. Acredito até que ele nem sabe o que é um blógui, assim como eu também não sabia até uns três meses atrás. Pra dizer a verdade, eu acho isso ótimo. O Gui está mais preocupado com livros e adora ficar horas dentro de uma biblioteca de verdade, daquelas em que você se perde pelo meio das estantes abarrotadas e se emociona ao sentir nas próprias mãos o códice desejado. Ele não se dá muito bem com coisas virtuais.

Aos fatos: o Gui, que mudou de mala e cuia com a Carol para o Rio de Janeiro, estava puto da vida porque, tanto o meu telefone quanto o da Vivi estavam desligados no domingo, dia em que o São Paulo conquistou o título brasileiro. Diga-se de passagem que o Gui vem de uma linhagem raríssima de são-paulinos fanáticos. Até dizem as más línguas que ele seria o verdadeiro herdeiro do trono imperial caso o Brasil retornasse ao sistema monárquico. Mas ele que se entenda com os Orleans e Bragança.

Na maior bronca, o Gui dizia no recado que, toda vez que o São Paulo ganhava um título, ele me ligava, e que não era justo eu não atendê-lo naquele momento. Ele também dizia que uma vez, chegou a me ligar lá da Alemanha pra me dar saudações tricolores, o que é uma inverdade. O Gui me ligou da Alemanha sim, mas foi no Natal. Ele estava completamente bêbado em Frankfurt, às cinco da manhã, e resolveu me desejar boas festas, o que me deixou extremamente emocionado. É nesses atos insanos que a gente diz, inevitavelmente: puta merda, esse cara é meu amigo mesmo.

Mas é verdade, virou tradição: basta o São Paulo ganhar um título que o Gui, antes mesmo de gritar: é campeão!, entra em contato aqui com o seu amigo corintiano para enaltecer mais um ato heróico da turma do Morumbi, Moruntri, Moruntetra, ou Moruncazzo. Apesar de sentir um enorme desprezo pelo São Paulo, porque a minha rivalidade sempre será com o Palmeiras, por mais que estejamos juntos na quinta divisão do campeonato metropolitano, eu também me sinto honrado por ser sempre lembrado por meu amigo nessas horas de alegria (dele, é claro).

Já que meu camarada não vai ler este texto, eu telefonarei para ele hoje à noite e direi: Parabéns pelo título, Gui. E comemore sem moderação. Espero te visitar em breve, para que possamos dar umas voltas pela Lapa e entrar em várias livrarias e sebos.

PS: A quem interessar possa, rola uma feira de livros na USP, no prédio da Fefeléchi, até amanhã à noite (não me lebro que horas), tudo com desconto de no mínimo 50%. Eu e a Vivi passaremos por lá hoje. É esquema liquidação, então eu sugiro que as pessoas não deixem pra última hora.

quarta-feira, novembro 22, 2006

Lá vai meu ônibus

Foram muitos meses chegando flores, cartas, visitas inesperadas e, muitas vezes, indesejadas de parte a parte. As famosas visitas de cortesia. Um sujeito não faz questão de visitar, o outro não faz questão de receber a visita, mas o encontro se dá, por razões que transcendem a vontade de ambos. A mulher, já cansada, também era vista como viúva, antes mesmo de enterrar o marido. E os vizinhos agiam como abutres.

Sim, um bando de abutres. Aquele ali, que viveu na casa em frente durante tanto tempo, nunca se deu ao trabalho de levantar os olhos e dizer bom dia, ou de apenas tentar sorrir. De um momento para o outro, virou um ser solícito, cheio de compaixão e de cuidados, interessado no cotidiano da família e se a viúva que ainda não era viúva necessitava de ajuda para carregar o lixo para fora de casa. Igual ao tal vizinho existiam tantos outros. Praticamente a rua inteira.

No começo, o Carlos se incomodava. Cada manifestação de carinho daqueles que nunca haviam se interessado por sua vida era vista por ele com aborrecimento. “O que esse cara quer comigo? Só porque eu estou morrendo ele vem cheio de delicadezas? Que se foda.”

Depois, com tudo se acaba acostumando. E a raiva virou indiferença, porque, afinal, o Carlos estava mesmo morrendo. Para que esquentar a cabeça com pessoas que nunca quiseram saber dele? Elas que dissessem bom dia e que ajudassem sua mulher a botar o lixo para fora. Passou, então, a dizer incongruências cada vez que alguém lhe dirigisse a palavra. Dizia: ratos andarilhos se pelam na formosura do amanhecer.

Sozinho, ele achava graça da cara de “lá vai meu ônibus” que as pessoas faziam antes de sair correndo, desorientadas. A mulher ralhou, dizendo que já falavam por aí que o Carlos estava louco. "A doença deve ter atingido o cérebro", alguém chegou a dizer. Mas, como com tudo se acaba acostumando, ela mesma começou a gostar da brincadeira.

Por um tempo, eles se divertiram com esse passatempo. E a mulher descobriu que tinha um talento incrível para inventar frases malucas. Ela inventava e o Carlos falava por aí. Até que as pessoas passaram a evitar o Carlos cada vez mais, porque não sabiam como lidar com aquela situação.

Acabou que os vizinhos, com o moribundo, voltaram a não falar nada. Como antes. Mas ao enterro, de ônibus ou não, quase todos foram.

Estratégia de Marketing

Mendigo em porta de igreja sempre existiu. Foi só levantarem o primeiro templo religioso para aparecer alguém por ali com um chapéu, ou algo que o valha, a pedir uma esmola. É, portanto, uma estratégia de marketing consagrada dos desvalidos. Eles esperam que pessoas que pretendem purificar a alma em solo sagrado serão mais benevolentes na hora de ajudar o próximo.

Variações dessa estratégia existem às pencas. Por exemplo: crianças que rondam as barracas de pastel nas feiras e pedem: tio, me paga um pastel?, justo naquele momento em que você está preparando uma bela dentada. Mais por constrangimento do que por piedade, muitas pessoas cedem e pagam à criança um pastel e uma coca, tudo pra se livrar depressa daquele incômodo que azedou o pastel instantaneamente.

Ultimamente, nas minhas andanças pelo Centro, eu comecei a notar uma variação diferente da estratégia dos mendigos à porta das igrejas: prostitutas à porta de caixas eletrônicos. Não sei se essa é nova ou velha, mas eu nunca tinha visto. Um dia eu passei em frente à agência do Banco do Brasil da Sé e vi uma mulher em trajes menores bem em frente ao luminoso amarelo. Como já era à noitinha, ela ainda aproveitou aquela iluminação para se destacar no ambiente. A cena se repetia todos os dias e, com o horário de verão, elas estão se amontoando ali em plena luz do dia, com luminoso apagado e tudo.

Eu fiquei imaginando a abordagem daquelas prostitutas aos transeuntes: "Oi, gato. Você tem conta no Banco do Brasil?" Para aqueles que entram no banco, elas devem dizer: "Conversamos na volta?". Finalmente, àqueles que saem da agência: "Que tal fazer um bom uso desse dinheiro?"

É, aqueles que trabalham com marketing sabem que, quanto maior a concorrência, mais agressiva, criativa e diferenciada deve ser a estratégia de venda. Eu não tenho dúvida que, quanto a pedintes e prostitutas, a concorrência aumenta a cada dia.

terça-feira, novembro 21, 2006

Encosto

Era comum que eu acordasse no meio da noite com a sensação de que morreria em breve. Meu lado fortemente hipocondríaco acusava uma pontada no peito, ou inventava uma dorzinha onde fosse. Eu não acordava assustado. Simplesmente acordava e saboreava esse incômodo. Não havia nada que pudesse ser feito e ponto.

Depois de tomar um copo d’água, eu voltava a me acomodar no sofá e tentava me conformar, porque, realmente, não havia nada que pudesse ser feito. Logo cedo a claridade invadia a sala e quase me despertava, até que a dor nas costas acabava por me expulsar o sono. Quanto mais cedo eu acordava, melhor eu me sentia, porque isso significava mais tempo só para mim naquele apartamento abafado.

Eu separava uns trocados e corria até a padaria para comprar pão e leite. O pão, àquela hora, estava sempre quentinho e com a casca crocante. De volta ao lar, não era raro acontecer de algum sujeito que eu nunca vira antes aparecer de cueca e se assustar com a figura de outro homem a passar um pão com manteiga na frigideira. Passado o impacto, normalmente eu recebia um meio bom dia e o silêncio se instalava, pesado. A maioria devia pensar: só pode ser parente dela, portanto, devo tratá-lo bem. De fato, a maioria tentava, de uma maneira ou de outra, me agradar, ou fingir que estava tudo bem.

Logo aparecia a Joana, de camisola, com cara de sono. Ela também tentava fingir naturalidade, mas sempre recusava qualquer coisa que eu oferecesse. “Você sabe que eu acordo sem fome”. O rapaz da vez se chamava Roberto. Ele gostou de mim. Conversamos, bebemos café e ele quase se sentiu à vontade para perguntar quem eu era. Se ele tivesse perguntado, eu teria respondido? Talvez. Mas ele não perguntou nada e saiu para o trabalho engravatado e com o cabelo cheio de gel, dizendo que tinha sido um prazer. “Dá um beijo na Jô e diz pra ela que eu ligo mais tarde”.

Naquela manhã, a Joana levantou tarde. Eu estava assistindo a uma partida de pólo aquático quando ela perguntou se o Roberto já saíra. Eu respondi que sim e que ele dissera que telefonaria mais tarde. “Ele também disse que você é maravilhosa”, menti. A Joana riu e abriu a geladeira e a porta de todos os armários, dizendo que estava faminta. “Você não acorda sem fome?” Ela respondeu que eu sabia muito bem que não, e que eu ficasse calado antes que ela perdesse a paciência comigo e me atirasse escada abaixo com sofá e tudo.

Quase perguntei se aquele Roberto era coisa séria, mas preferi ficar na minha. O jogo de pólo aquático estava realmente emocionante. A Joana, antes de sair de casa, como em todos os dias, me lançou um olhar de desprezo, e eu pensei, como em todos os dias, enquanto a morte me cutucava o pé: ela jamais me daria outra chance.