Profissão: vagabundo
Ao fazer uma faxina aqui no apartamento, antes de passar o bastão ao meu amigo Thiago, encontrei um texto que eu escrevi já deve fazer uns dez anos, sem exagero. É uma historinha singela, em forma de diálogo, que eu me lembro de meu irmão ter achado parecida com o estilo do Verissimo - o filho, é claro. Segue a historinha:
-- Nome?
-- Tadeu Goulart.
-- Data de nascimento?
-- Dez de fevereiro de mil novecentos e sessenta e sete.
-- Profissão?
-- Vagabundo.
-- Como?
-- Vagabundo. Eu sou um vagabundo como muitos outros.
-- Mas essa não é uma profissão regulamentada.
-- Põe "outros", então.
-- Que "outros" o quê! "Outros" a gente coloca quando tem uma lista de opções e a pessoa não se encaixa em nenhuma delas. Eu não estou te dando lista alguma.
-- Eu não sei o que colocar. O que eu coloco?
-- Que tal "estudante"?
-- Amigo, faz mais de quinze anos que eu deixei a escola. E se eu não estudava na época, imagine agora.
-- Tudo bem. Quando a pessoa não é nada, nós sempre classificamos como estudante.
-- Mas eu não sou "nada". Eu sou vagabundo. Vagabundo profissional.
-- Como profissional? O senhor ganha pra ser vagabundo, por acaso?
-- De certa forma...
-- Como assim?
-- Olha, o meu pai era sapateiro, certo?
-- Certo.
-- Quando ele faleceu, deixou a sapataria para mim e para meu irmão mais novo, certo?
-- Certo.
-- Então. Meu irmão, que tem mais tino para o negócio, me paga um salário para que eu não atrapalhe. Sou ou não sou vagabundo profissional?
-- Pode ser, mas eu não posso pôr isso aqui, entende?
-- Não entendo. Essa sociedade é muito hipócrita. Sempre que eu passo, é um tal de: "Lá vai o vagabundo", "Tudo bem, vagabundo?". Quando eu assumo essa condição, sou impedido pela mesma, por questões burocráticas, de me utilizar do título que seus próprios componentes me deram.
-- Eu já falei, vamos colocar "estudante".
-- Não, eu não sou estudante.
-- Mente, oras.
-- Mentir? Jamais. O senhor já pensou se além de vagabundo eu fosse mentiroso? Além do mais, se eu fosse mentir, mentiria com estilo. Não ia escolher "estudante" e sim "médico", "físico nuclear", ou até "diplomata". Que tal?
-- Olha, me desculpe, mas eu desisto. Já perdi muito tempo com o senhor. Ou o senhor aceita "estudante" e seguimos em frente ou paramos por aqui e o senhor vai embora. "Estudante"?
-- Não, não posso aceitar tal...
-- Próximo!
-- Espere um pouco.
-- "Estudante"?
-- Vamos conversar.
-- Eu não ganho o suficiente. Próximo!
-- Ei, cara. Desocupe essa cadeira. Não ouviu ele me chamar?
-- Não, eu ouvi ele chamar o próximo. Você é o senhor Próximo, por acaso?
-- Olha aqui, seu engraçadinho: ou você sai daí ou eu quebro a sua cara.
-- Calma, senhores.
-- Calma nada. Ele me chamou pro pau. Eu sou vagabundo mas não sou covarde, qual é?
-- Então vem.
-- Segurança!
-- Isso é o melhor que você pode fazer, senhor Próximo?
-- A cadeira não, por favor! Segurança!!!
-- Ele não queria a cadeira? Dei pra ele.
-- Você quase matou o sujeito!
-- O que está acontecendo aqui?
-- Foi ele quem começou.
-- Você vai explicar isso na delegacia.
-- Tudo bem, não precisa empurrar.
-- Entra aí, vagabundo!
-- Ouviu? Não falei? Não falei que eu era...ai! Cuidado com esse cassetete, moço.
-- Você vai esperar aí, quietinho, até a gente te chamar.
-- Oi, belezura. Tá livre hoje?
-- Vai te catar!
-- E você, por que está aqui?
-- Vê se vai encher o saco de outro, certo?
-- Acorda, vagabundo! Sua vez.
-- Então foi você que quebrou uma cadeira na cabeça de um trabalhador?
-- O senhor Próximo? Foi ele quem começou, seu delegado.
-- Anota os dados do elemento aí que eu já volto.
-- Sim, senhor. Nome?
-- Tadeu Goulart.
-- Data de nascimento?
-- Dez de fevereiro de mil novecentos e sessenta e sete.
-- Profissão?
-- Estudante.