sexta-feira, agosto 10, 2007

Profissão: vagabundo

Ao fazer uma faxina aqui no apartamento, antes de passar o bastão ao meu amigo Thiago, encontrei um texto que eu escrevi já deve fazer uns dez anos, sem exagero. É uma historinha singela, em forma de diálogo, que eu me lembro de meu irmão ter achado parecida com o estilo do Verissimo - o filho, é claro. Segue a historinha:
-- Nome?
-- Tadeu Goulart.
-- Data de nascimento?
-- Dez de fevereiro de mil novecentos e sessenta e sete.
-- Profissão?
-- Vagabundo.
-- Como?
-- Vagabundo. Eu sou um vagabundo como muitos outros.
-- Mas essa não é uma profissão regulamentada.
-- Põe "outros", então.
-- Que "outros" o quê! "Outros" a gente coloca quando tem uma lista de opções e a pessoa não se encaixa em nenhuma delas. Eu não estou te dando lista alguma.
-- Eu não sei o que colocar. O que eu coloco?
-- Que tal "estudante"?
-- Amigo, faz mais de quinze anos que eu deixei a escola. E se eu não estudava na época, imagine agora.
-- Tudo bem. Quando a pessoa não é nada, nós sempre classificamos como estudante.
-- Mas eu não sou "nada". Eu sou vagabundo. Vagabundo profissional.
-- Como profissional? O senhor ganha pra ser vagabundo, por acaso?
-- De certa forma...
-- Como assim?
-- Olha, o meu pai era sapateiro, certo?
-- Certo.
-- Quando ele faleceu, deixou a sapataria para mim e para meu irmão mais novo, certo?
-- Certo.
-- Então. Meu irmão, que tem mais tino para o negócio, me paga um salário para que eu não atrapalhe. Sou ou não sou vagabundo profissional?
-- Pode ser, mas eu não posso pôr isso aqui, entende?
-- Não entendo. Essa sociedade é muito hipócrita. Sempre que eu passo, é um tal de: "Lá vai o vagabundo", "Tudo bem, vagabundo?". Quando eu assumo essa condição, sou impedido pela mesma, por questões burocráticas, de me utilizar do título que seus próprios componentes me deram.
-- Eu já falei, vamos colocar "estudante".
-- Não, eu não sou estudante.
-- Mente, oras.
-- Mentir? Jamais. O senhor já pensou se além de vagabundo eu fosse mentiroso? Além do mais, se eu fosse mentir, mentiria com estilo. Não ia escolher "estudante" e sim "médico", "físico nuclear", ou até "diplomata". Que tal?
-- Olha, me desculpe, mas eu desisto. Já perdi muito tempo com o senhor. Ou o senhor aceita "estudante" e seguimos em frente ou paramos por aqui e o senhor vai embora. "Estudante"?
-- Não, não posso aceitar tal...
-- Próximo!
-- Espere um pouco.
-- "Estudante"?
-- Vamos conversar.
-- Eu não ganho o suficiente. Próximo!
-- Ei, cara. Desocupe essa cadeira. Não ouviu ele me chamar?
-- Não, eu ouvi ele chamar o próximo. Você é o senhor Próximo, por acaso?
-- Olha aqui, seu engraçadinho: ou você sai daí ou eu quebro a sua cara.
-- Calma, senhores.
-- Calma nada. Ele me chamou pro pau. Eu sou vagabundo mas não sou covarde, qual é?
-- Então vem.
-- Segurança!
-- Isso é o melhor que você pode fazer, senhor Próximo?
-- A cadeira não, por favor! Segurança!!!
-- Ele não queria a cadeira? Dei pra ele.
-- Você quase matou o sujeito!
-- O que está acontecendo aqui?
-- Foi ele quem começou.
-- Você vai explicar isso na delegacia.
-- Tudo bem, não precisa empurrar.
-- Entra aí, vagabundo!
-- Ouviu? Não falei? Não falei que eu era...ai! Cuidado com esse cassetete, moço.
-- Você vai esperar aí, quietinho, até a gente te chamar.
-- Oi, belezura. Tá livre hoje?
-- Vai te catar!
-- E você, por que está aqui?
-- Vê se vai encher o saco de outro, certo?
-- Acorda, vagabundo! Sua vez.
-- Então foi você que quebrou uma cadeira na cabeça de um trabalhador?
-- O senhor Próximo? Foi ele quem começou, seu delegado.
-- Anota os dados do elemento aí que eu já volto.
-- Sim, senhor. Nome?
-- Tadeu Goulart.
-- Data de nascimento?
-- Dez de fevereiro de mil novecentos e sessenta e sete.
-- Profissão?
-- Estudante.

quinta-feira, agosto 09, 2007

Fábula

Era uma vez, um ensaio de um ensaio sobre o óbvio:

Falemos do óbvio. Eu não saberia falar de nada além dos traços nítidos que os movimentos da humanidade riscam no chão. Algumas pegadas ficam, outras são bem apagadas e, outras ainda, são forjadas. Tudo muito óbvio, é claro.
E como eu pretendo ser, em breve, um profissional do óbvio, resolvi colocá-lo em pauta. Quero que fique claro, apenas, que tenho plena consciência de quão fúteis são as minhas palavras. Toda essa futilidade, infelizmente, contribui ainda mais para que os traços da humanidade pareçam tragicamente gravados, com uma nitidez completamente obscena.
Da obviedade da política. Miremos os pólos que consistem o quadro político de nossa sociedade. Separados por um verdadeiro mangue, um lodaçal de idéias, anseios, projetos estapafúrdios e não-projetos da maior pertinência, encontram-se a situação e a oposição, respingados até a alma por todos os elementos do pântano político. Sim, eles são constituídos pelo mesmo caos que, ilusoriamente, parece separá-los.
Imaginemos agora, um governo qualquer. O que faz o governo, além de espalhar em todas as direções possíveis, seus louváveis feitos em prol da comunidade? O pensamento no bem comum. Diz o governo qualquer: “o muito que acertamos e o pouco que erramos (há que se parecer humilde) sempre foi e sempre será feito com o intuito de melhorar as condições de nosso povo. Sabemos que ainda há muito a ser feito, mas…”.
Todo e qualquer governo tem uma oposição, seja ela manifesta ou latente. É o grupo que não faz outra coisa além de espalhar as patetadas e as atividades ilícitas cometidas pelo governo. Diz a oposição do governo qualquer: “o governo não fez, até o momento, nada que preste (há que se parecer agressivo). Todos os atos dos que aí estão a governar, resumem-se a bravatas, factóides, atitudes próprias de um bando de despreparados e, muitíssimas vezes, levianos, que não queriam nada além de assumir o poder e, com isso, trair a confiança da população”.
O lodaçal, infestado por figuras que, com uma mão, cumprimentam os governantes e, com a outra, sinalizam com a oposição, completa este triste quadro. Faltam detalhes, bem sei. Mas o óbvio aí está. E é dele que prometi tratar.
O óbvio insultante, nojento, nauseante e pérfido é: em todo esse exercício de retórica, praticado por aqueles que visam sentar ao trono, quem menos importa é o povo. Descobri a pólvora, não? Descobri. Milhares de anos depois dos chineses. E ainda tem gente que se machucaria com essa minha invenção.
Isto, claro, caso minha voz tivesse uma mínima importância em nossa sociedade. Mas eu sou apenas mais um, uma pessoa óbvia que, caso fique com um revólver apontado para o rosto, jamais será socorrida pelo governador.
Suponhamos, então, algo realmente absurdo, quase surreal aos ouvidos de amantes do classicismo. Suponhamos que algum político, seja da oposição, seja da situação, tome conhecimento de minha óbvia teoria e, ainda por cima, resolva dignar-se a me responder.
O político, ao ouvir minhas pobres palavras, assustadoramente mal escritas, leves sombras de uma tentativa patética de elaborar uma crítica, ri às gargalhadas. Ele, com o olhar mais zombeteiro que consegue construir em sua face, encara-me e diz:
-- Amigo, você é um analfabeto político. Já leu Marx? Já leu Maquiavel?, Adam Smith?, Platão?, alguém da Escola de Frankfurt?, da Ecole des Anale?
Depois de enfileirar mais uma dezena de nomes de pensadores aos quais nunca ouvi falar, o político, como se fora um elefante face a uma formiguinha, resolve tomar da piedade de Tristram Shandy e, ao invés de me esmagar, apenas me dá um peteleco para longe. Do alto de sua piedade superior, frente a um ser tão lheguelhé, diz que “há lugar no mundo para nós dois”.
Ao se afastar, o político ainda volta a cabeça para trás e dá um conselho valiosíssimo, assim, de graça – oh, que homem soberbo – : “estude, meu rapaz. Quem sabe um dia nós voltamos a conversar”.
Pólvora? Não, bala de festim. Não obstante, quando o mesmo político está deitado em sua confortável cama, ao lado de sua adorável esposa, ouvindo o agradável barulho da chuva que cai lá fora – agradável pra nós, que estamos aqui dentro –, ele chega a confessar por um pequeno instante, que a formiguinha tem lá sua razão. E como tem!
A confissão logo dá lugar a uma série de pensamentos agradáveis e ele se vê fortalecido, pronto para, no dia seguinte, repelir quantas formiguinhas for necessário. O político ainda sorri e pensa: “preciso concentrar meus esforços para combater o leão”.