quarta-feira, novembro 01, 2006

Nota Cinco e Meio - Parte I

O Ivan trabalhava como editor da Super Engine. Ele odiava aquilo lá e, todos os meses, tentava suportar com um mínimo de dignidade o estresse do fechamento da revista. Quando a gastrite apertava, ele contra-atacava no boteco da esquina.

Outro ganha-pão do velho jornalista era dar aula de Introdução ao Jornalismo na PUC. A aula dele era basicamente um discurso mais ou menos assim: quem entrou nesta específica faculdade por gostar de escrever se fodeu. Está no lugar errado. Ser jornalista não tem nada a ver com escrever. Escrever é só o fim de um processo. Ser jornalista significa ser curioso, significa ter uma sede gigantesca de buscar os fatos e trazê-los à tona; ser jornalista significa seduzir a fonte (porque ninguém entrega o ouro de bandeja), cavar a verdade do fundo dos mais recônditos esconderijos e, acima de tudo, prestar o nobre serviço de ser os olhos vigilantes da democracia.

O papo-furado prosseguia: ser jornalista é o oposto de ser escritor. O escritor é aquela figura introspectiva, que precisa de sossego para produzir. O jornalista, ao contrário, tem que mergulhar na confusão até o último fio de cabelo; ele tem que respirar a balbúrdia de uma redação de jornal e sentir que aquela é a sua segunda casa. Porque a primeira casa de um grande jornalista é a rua.

Não demoravam a aparecer as queixas sobre os dias atuais. Hoje o jornalista é um acomodado, um burocrata que fica atrás de uma mesa esperando que a notícia lhe bata à porta. Hoje ele acredita que o mundo está nas páginas da Internet. O jornalista não quer mais suar a camisa e não quer mais vencer os desafios da profissão.

Esse era o gancho para que o Ivan começasse a falar como nós, estudantes, não sabíamos o que significava trabalhar sob a ameaça constante de uma ditadura que não pestanejava em empastelar redações, prender, torturar e dar sumiço em repórteres. Nós não sabíamos o que era ver a destruição de meses de apuração e de investigação intensa. Meses! Porque antes os editores apoiavam aqueles repórteres que queriam mergulhar até as entranhas dos fatos e realizar um trabalho verdadeiramente jornalístico. E ninguém publicava nada sem a mais absoluta certeza do que estava dizendo. Quando o Ivan dizia ninguém, ele se referia aos grandes, porque sempre existiram os maus profissionais. Para os fodões, ética era uma palavra sagrada, e não um conceito filosófico abstrato, lecionado nas universidades como se fosse algo impossível de se aplicar.

E tudo isso, os velhos jornalistas aprenderam na prática. Na porrada, no meio do fogo cruzado e tomando na cabeça. O jornalismo era praticado por pessoas que tinham vocação para se arriscar. Eram pessoas sedentas para ir de encontro aos fatos, fossem interessantíssimos ou banais, com a mesma gana e seriedade. Eram pessoas que corriam atrás do embasamento teórico, que procuravam estudar outras línguas, política, sociologia, filosofia, economia, literatura. "Nós bebíamos Marx no café da manhã". Eles se misturavam com o povo, iam para as portas das fábricas, interessavam-se pela realidade brasileira.

Para finalizar, o Ivan contava sobre uma reportagem maravilhosa que ele tinha feito. Ele adorava detalhar a perspicácia com a qual ridicularizava autoridades militares sem que elas percebessem. Ele quase gozava ao falar da sua própria inteligência, vivacidade, ligeireza e grandeza. Tudo dentro da mais absoluta ética, da mais cristalina lealdade, do mais puro respeito às personagens do fato em questão. "Nós arrancávamos as informações só com o raciocínio. Não éramos arapongas". E tudo era feito sem invencionices, com cada vírgula checada uma dezena de vezes. Ficção é para escritores. E caso alguém ali quisesse ser escritor, que não perdesse tempo nem dinheiro. "Vá embora daqui e não volte. Será um bem que você fará a si mesmo e à instituição Jornalismo".

Continua...

terça-feira, outubro 31, 2006

Ágora Particular

Outro dia eu tive uma conversa muito franca com um editor, a quem preservarei aqui a identidade (sei lá por quê). Eu falei pra ele sobre um calhamaço de 162 páginas que eu escrevi e que eu estava pensando em mandar pras editoras. Ele falou, com todas as letras: esse canal não existe. Eu já tinha essa idéia, mas foi bom ouvir de um editor (o que não vai me impedir de incinerar algumas cópias por aí). Ele me disse que todos os escritores de ficção para o público adulto só conseguiram emplacar sua obra depois de perambular pela Vila Madalena com 200 cópias debaixo do braço; depois de freqüentar o meio intelectual; de ficar amigo das pessoas certas; de encher o saco do cara que trabalha na Ilustrada etc.

As editoras, mais do que avaliar a qualidade da obra, estão interessadas na ficha do autor. Quem é esse Tomaz Gouvêa? Sei lá. Então manda pro forno que eu não vou perder meu tempo. É basicamente isso. Em conversa com a Vivi, eu já falei que não tenho nenhuma tara especial em ver meu livro publicado. É claro que eu gostaria, porque eu acredito naquilo que escrevo. Mas eu não vou partir pra edição paga e nem vou bajular pessoas. Eu não vou tentar ficar amigo da intelectualidade da Vila Madalena, não vou puxar o saco de nenhum jornalista da Folha e nem vou tentar virar um cactus da Praça Roosevelt só pra conseguir espaço pras minhas histórias.

Não sou nada contra quem faz isso e não estou acusando os escritores de serem interesseiros. Cada um faz o que acha que deve, do jeito que acha que deve. O fato é que eu gostaria que mais gente lesse o que eu escrevo, além dos meus queridos amigos, dos familiares e da Vivi. Mas pra isso eu não vou sair por aí fazendo novas amizades. Eu concordo com o Seinfeld quando ele diz que, quando chegamos aos 30, não temos mais saco pra fazer novos amigos. É isso aí. Meus amigos são vocês. Está decidido e definido. Nada contra conhecer novas pessoas, mas eu já tenho as pessoas que eu gosto por perto e estou feliz com elas. Se for só pra elas que eu vou escrever, continuarei fazendo isso sem problema.

Dessa conversa, surgiu uma sugestão: que eu virasse escritor de histórias juvenis. De acordo com esse editor, o comportamento das editoras em relação aos escritores de livros infanto-juvenis é completamente diferente. Elas não querem saber porra nenhuma de quem seja o fulano que escreveu As aventuras da tartaruguinha serelepe. Se a história for boa, eles publicam e pronto. Talvez porque os próprios leitores mirins sejam mais honestos. Afinal, os leitores adultos também regulam a leitura de acordo com a fama do escritor, ou da escritora. Se o sujeito ganhou o Big Brother, lá vai um bando de imbecis ler um livro que ele escreveu.

Junto com a sugestão, o editor me deu um livro de uma escritora chamada Índigo, é o pseudônimo da Ana (esqueci o sobrenome). E me disse: escolha um tema, escreva um conto voltado pro público juvenil e me manda. Eu li o livro de contos da Índigo: Histórias da mexerica. Eu gostei da maioria dos contos. De outros nem tanto. Mas cheguei à conclusão de que não sirvo pra isso. Nada contra escrever pros adolescentes, ou pros "jovens leitores" (como gostam de dizer os velhos). O problema é que a minha motivação não é essa. Eu quero escrever as coisas que eu escrevo e do jeito que eu escrevo.

O advogado do diabo poderia me perguntar: o que você quer, porra? Você quer ser lido por mais gente sem cavar esse público? Você quer ser escritor sem se preocupar com as necessidades do mercado? Você pensa que está na Grécia Antiga? Vai procurar uma ágora e pára de encher o saco. Certo, mas eu não preciso procurar uma ágora. A minha ágora são vocês. E vou continuar escrevendo o que eu escrevo, do jeito que eu escrevo. Pelo menos por amizade, eu sei que os meus leitores não me abandonam. Sobre a sugestão do Tiago Vedovello de colocar partes do meu livro aqui: pensarei nessa idéia com carinho, meu irmão. Mas ainda não sei se quero fazer isso. Minha idéia pra esse blog é só falar das merdas que me derem na (pouca)telha e, de vez em quando (quando não me ocorrer nada), jogar um conto, ou uma crônica que eu escrevi.

segunda-feira, outubro 30, 2006

Confissões de um Elitista de Merda

Sobre a situação política do nosso querido Brasil, ela me lembra uma tirinha da Mafalda, em que ela conversa sobre as eleições com sua amiguinha minúscula chamada Liberdade. Mafalda: "Seu pai sabe em quem vai votar?" Liberdade: "Sabe, e o coitado anda com uma cara..." Mafalda: "Por quê? Ele acha que o candidato dele vai perder?" Liberdade: "Não, ele acha que vai ganhar. E o coitado anda com uma cara..." Mafalda: "Ué, então por que ele não vota no outro candidato?" Liberdade: "Ele pensou nisso. E o coitado fez uma cara..." Numa outra tirinha, a Liberdade diz mais ou menos isso: "Às vezes meu pai acha que não vão deixar o candidato dele governar. E ele faz uma cara... Depois ele acha que vão deixar, e o coitado faz uma cara..."

Pois é, eu votei no Lula e, confesso, ando com uma cara... Estou cansado dessa masturbação mental entre tucanos e petistas. Profundamente cansado. E aqui, faço uma auto-crítica. Eu alimentei muitas discussões ferozes pra sustentar minha opinião, mas, agora, percebo que não sobrou muito além do cansaço. Explico: na verdade, eu não votei no Lula; votei contra o PSDB-PFL. E por quê? Porque, na verdade, eu votei contra uma mentalidade. Foi um protesto democrático contra a nossa elite preconceituosa, que vota sempre em peso contra o Lula. E eles não votam contra o Lula por questões políticas, nem por causa dos escândalos de corrupção. Eles votam contra o Lula porque são preconceituosos. Eles morrem de vergonha de ter um presidente nordestino, que não tem nem o segundo grau completo.

Algum petista chato pode aparecer aqui e dizer que não, que o Lula incomoda a elite porque ele governa pros pobres. Isso pode ter acontecido antes. A elite não tem mais medo do Lula e nem do PT. Ela sabe que todos eles vão dançar bonitinhos conforme a música se não quiserem levar um sonoro pé nos fundilhos. E eu vou logo avisando: vou dar uma de ditador e não vou nem publicar comentários que venham defender a "preocupação social" do PT. Porque a eleição já passou, ele já ganhou e ninguém precisa vir com essa hipocrisia. Se alguém quiser fingir que acredita que o Lula governou pros pobres (talvez isso ajude a pessoa a dormir em paz), que fique à vontade. E se alguém quer fingir que acredita no atual discurso do Lula ("preparamos o terreno e, agora, daremos o salto de qualidade"), fique também à vontade. Mas não conte comigo. Não conte comigo mesmo.

Enfim, faço coro à fala do Chico Buarque: "É claro que eu vou votar no Lula. Votar no Alckmin é que eu não vou". Eu estou cansado e angustiado, porque não vejo em nenhum partido uma proposta de mudança verdadeira. Eu não sei o que fazer, não sei o que pensar, estou confuso e com uma baita dor de cabeça. Alguém tem alguma sugestão? Também já vou dizendo que, infelizmente, não consigo confiar na derrocada do PFL. Eu sei, eles perderam 20% da bancada; eles só elegeram o governador do DF (o Arruda! lembram dele?); ACMs e Sarneys perderam a eleição; agora eles são só o quarto maior partido do Brasil. Não sejamos ingênuos. O PFL representa uma mentalidade que, muitas vezes, se disfarça por trás de outras siglas. Essa mentalidade está muuuuuuuuuuuuuuuuuito longe de perder força no Brasil. Ela está muito viva.

Eu sei que esse comentário não serve pra nada, porque eu também não proponho nada (tô parecendo o Zé Arbex). Mas talvez sirva pra que fique um incômodo na cabeça de todos nós. Uma dorzinha de cabeça, uma voz que incomoda o tempo todo, a dizer: não mudou nada, não vai mudar nada. Pode me xingar e dizer: você não sabe o que é passar fome, seu elitista de merda. Não sei mesmo. Sou um elitista de merda mesmo. Mas não se iluda ao pensar que um voto no Lula te redime de alguma coisa. Não pense que você é melhor do que eu, seja pelo motivo que for. Nós da elite somos todos uns merdas.