Nota Cinco e Meio - Parte I
O Ivan trabalhava como editor da Super Engine. Ele odiava aquilo lá e, todos os meses, tentava suportar com um mínimo de dignidade o estresse do fechamento da revista. Quando a gastrite apertava, ele contra-atacava no boteco da esquina.
Outro ganha-pão do velho jornalista era dar aula de Introdução ao Jornalismo na PUC. A aula dele era basicamente um discurso mais ou menos assim: quem entrou nesta específica faculdade por gostar de escrever se fodeu. Está no lugar errado. Ser jornalista não tem nada a ver com escrever. Escrever é só o fim de um processo. Ser jornalista significa ser curioso, significa ter uma sede gigantesca de buscar os fatos e trazê-los à tona; ser jornalista significa seduzir a fonte (porque ninguém entrega o ouro de bandeja), cavar a verdade do fundo dos mais recônditos esconderijos e, acima de tudo, prestar o nobre serviço de ser os olhos vigilantes da democracia.
O papo-furado prosseguia: ser jornalista é o oposto de ser escritor. O escritor é aquela figura introspectiva, que precisa de sossego para produzir. O jornalista, ao contrário, tem que mergulhar na confusão até o último fio de cabelo; ele tem que respirar a balbúrdia de uma redação de jornal e sentir que aquela é a sua segunda casa. Porque a primeira casa de um grande jornalista é a rua.
Não demoravam a aparecer as queixas sobre os dias atuais. Hoje o jornalista é um acomodado, um burocrata que fica atrás de uma mesa esperando que a notícia lhe bata à porta. Hoje ele acredita que o mundo está nas páginas da Internet. O jornalista não quer mais suar a camisa e não quer mais vencer os desafios da profissão.
Esse era o gancho para que o Ivan começasse a falar como nós, estudantes, não sabíamos o que significava trabalhar sob a ameaça constante de uma ditadura que não pestanejava em empastelar redações, prender, torturar e dar sumiço em repórteres. Nós não sabíamos o que era ver a destruição de meses de apuração e de investigação intensa. Meses! Porque antes os editores apoiavam aqueles repórteres que queriam mergulhar até as entranhas dos fatos e realizar um trabalho verdadeiramente jornalístico. E ninguém publicava nada sem a mais absoluta certeza do que estava dizendo. Quando o Ivan dizia ninguém, ele se referia aos grandes, porque sempre existiram os maus profissionais. Para os fodões, ética era uma palavra sagrada, e não um conceito filosófico abstrato, lecionado nas universidades como se fosse algo impossível de se aplicar.
E tudo isso, os velhos jornalistas aprenderam na prática. Na porrada, no meio do fogo cruzado e tomando na cabeça. O jornalismo era praticado por pessoas que tinham vocação para se arriscar. Eram pessoas sedentas para ir de encontro aos fatos, fossem interessantíssimos ou banais, com a mesma gana e seriedade. Eram pessoas que corriam atrás do embasamento teórico, que procuravam estudar outras línguas, política, sociologia, filosofia, economia, literatura. "Nós bebíamos Marx no café da manhã". Eles se misturavam com o povo, iam para as portas das fábricas, interessavam-se pela realidade brasileira.
Para finalizar, o Ivan contava sobre uma reportagem maravilhosa que ele tinha feito. Ele adorava detalhar a perspicácia com a qual ridicularizava autoridades militares sem que elas percebessem. Ele quase gozava ao falar da sua própria inteligência, vivacidade, ligeireza e grandeza. Tudo dentro da mais absoluta ética, da mais cristalina lealdade, do mais puro respeito às personagens do fato em questão. "Nós arrancávamos as informações só com o raciocínio. Não éramos arapongas". E tudo era feito sem invencionices, com cada vírgula checada uma dezena de vezes. Ficção é para escritores. E caso alguém ali quisesse ser escritor, que não perdesse tempo nem dinheiro. "Vá embora daqui e não volte. Será um bem que você fará a si mesmo e à instituição Jornalismo".
Continua...
Outro ganha-pão do velho jornalista era dar aula de Introdução ao Jornalismo na PUC. A aula dele era basicamente um discurso mais ou menos assim: quem entrou nesta específica faculdade por gostar de escrever se fodeu. Está no lugar errado. Ser jornalista não tem nada a ver com escrever. Escrever é só o fim de um processo. Ser jornalista significa ser curioso, significa ter uma sede gigantesca de buscar os fatos e trazê-los à tona; ser jornalista significa seduzir a fonte (porque ninguém entrega o ouro de bandeja), cavar a verdade do fundo dos mais recônditos esconderijos e, acima de tudo, prestar o nobre serviço de ser os olhos vigilantes da democracia.
O papo-furado prosseguia: ser jornalista é o oposto de ser escritor. O escritor é aquela figura introspectiva, que precisa de sossego para produzir. O jornalista, ao contrário, tem que mergulhar na confusão até o último fio de cabelo; ele tem que respirar a balbúrdia de uma redação de jornal e sentir que aquela é a sua segunda casa. Porque a primeira casa de um grande jornalista é a rua.
Não demoravam a aparecer as queixas sobre os dias atuais. Hoje o jornalista é um acomodado, um burocrata que fica atrás de uma mesa esperando que a notícia lhe bata à porta. Hoje ele acredita que o mundo está nas páginas da Internet. O jornalista não quer mais suar a camisa e não quer mais vencer os desafios da profissão.
Esse era o gancho para que o Ivan começasse a falar como nós, estudantes, não sabíamos o que significava trabalhar sob a ameaça constante de uma ditadura que não pestanejava em empastelar redações, prender, torturar e dar sumiço em repórteres. Nós não sabíamos o que era ver a destruição de meses de apuração e de investigação intensa. Meses! Porque antes os editores apoiavam aqueles repórteres que queriam mergulhar até as entranhas dos fatos e realizar um trabalho verdadeiramente jornalístico. E ninguém publicava nada sem a mais absoluta certeza do que estava dizendo. Quando o Ivan dizia ninguém, ele se referia aos grandes, porque sempre existiram os maus profissionais. Para os fodões, ética era uma palavra sagrada, e não um conceito filosófico abstrato, lecionado nas universidades como se fosse algo impossível de se aplicar.
E tudo isso, os velhos jornalistas aprenderam na prática. Na porrada, no meio do fogo cruzado e tomando na cabeça. O jornalismo era praticado por pessoas que tinham vocação para se arriscar. Eram pessoas sedentas para ir de encontro aos fatos, fossem interessantíssimos ou banais, com a mesma gana e seriedade. Eram pessoas que corriam atrás do embasamento teórico, que procuravam estudar outras línguas, política, sociologia, filosofia, economia, literatura. "Nós bebíamos Marx no café da manhã". Eles se misturavam com o povo, iam para as portas das fábricas, interessavam-se pela realidade brasileira.
Para finalizar, o Ivan contava sobre uma reportagem maravilhosa que ele tinha feito. Ele adorava detalhar a perspicácia com a qual ridicularizava autoridades militares sem que elas percebessem. Ele quase gozava ao falar da sua própria inteligência, vivacidade, ligeireza e grandeza. Tudo dentro da mais absoluta ética, da mais cristalina lealdade, do mais puro respeito às personagens do fato em questão. "Nós arrancávamos as informações só com o raciocínio. Não éramos arapongas". E tudo era feito sem invencionices, com cada vírgula checada uma dezena de vezes. Ficção é para escritores. E caso alguém ali quisesse ser escritor, que não perdesse tempo nem dinheiro. "Vá embora daqui e não volte. Será um bem que você fará a si mesmo e à instituição Jornalismo".
Continua...
2 Comments:
Tomaz,
É parte do livro??? Acho que sim, né? Aviso: meu blog mudou pro blogger (http://www.rapsodia-online.blogspot.com). Abraço!
Fala, Ygor.
Esse texto não é parte do meu livro. É um conto que eu escrevi e eu achei que fucou muito longo pra postar de uma vez. Vou mudar o endereço do seu blog na lista de links.
Abraço
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