quinta-feira, novembro 09, 2006

Dia Estressante

Devo confessar, com o rosto imbuído de vergonha, que hoje eu trabalhei horrores. Tudo começou quando eu vi que perdi hora. Olhei para aquele maldito despertador e aquele maldito despertador me piscou: são nove horas, bonitão. Puta que pariu, eu tinha uma reunião às dez. O jeito foi colocar o despertador até as nove e meia a dizer: eu pego um táxi e chego no trabalho em dez minutos. Cheguei mesmo, porque o táxi vai pelo passa-rápido enquanto todo mundo se fode naquele trânsito da Consolação.

A porra da reunião durou quatro horas. Aquela coisa de mil pessoas querendo falar e eu querendo cochilar, mas não podia. Eu tinha que prestar atenção e depois escrever uma matéria. E eu prestei atenção em tudo, até na fala de um japonês meio engraçado que falava português sem usar nenhuma espécie de artigo. Ele dizia: "Pessoa vai lá e pede coisa pra subprefeito..." Não existe artigo na língua japonesa? Alguém poderia me esclarecer essa questão?

Acabou a porra da reunião lá pelas duas, e meu estômago estava revoltado, porque não deu tempo de tomar café. E o chefe queria conversar comigo às três e meia. E eu tinha a porra da matéria pra escrever. E eu engoli uma salada com arroz, feijão e bife à milanesa. E voltei correndo, sem dar tempo de ler um pouco da peça do Arthur Miller. E, caralho, eu já estava cansado.

Escrevi a porra da matéria, mostrei prum colega e ele disse: ficou bom, mas eu poria isso e mais isso. Eu pus isso e mais isso. O chefe me chamou pra falar de outro assunto, mas eu aproveitei para falar da matéria. Ele disse: ficou bom, mas eu poria isso e mais aquilo outro. Já eram cinco da tarde, quando eu voltei ao meu lugar pra pôr o isso e o aquilo outro que o chefe pediu. Pus, a matéria ficou pronta, enviei ao Everaldo e fiz: ufa.

Mas aí chegou outra pendência. Eu tive que conversar sobre um outro assunto com uma outra pessoa e minha cabeça dizia: chega, caralho. Porque a minha cabeça só topa pensar umas duas ou três horas por dia. A pendência falava e eu não entendia nada, até que eu disse: amanhã eu ligo pro cara da gráfica, pode ser? A pendência parou, olhou bem fundo nos meus olhos, coçou a cabeça e disse: ok.

Aí eu fiz ufa de novo e pensei: trabalhei muito, estou cansado. Fazia quanto tempo que eu não trabalhava tanto assim? Uns dois anos e meio. Ufa, acho que eu posso respirar até meados de 2009.

quarta-feira, novembro 08, 2006

Baú Paraguaio

Ducaralho essa mente humana. Hoje eu estava voltando do almoço, quando vi expostas numa banquinha (a mesma que vendia o livro do Stanislaw Ponte Preta por 10 reais) umas Playboys antigas. E lá estava a Playboy da Xuxa, à venda por 150 reais. Não eram 15, meus senhores. Eram 150 mesmo. Cheguei bem perto para não haver nenhuma dúvida.

De volta ao trabalho, aproveitei o resto do meu horário de almoço pra ler uma peça do Arthur Miller, Morte dum caixeiro viajante, que a Vivi me emprestou faz um tempão. Nessa peça, o autor abusa de um recurso interessante: Willy Loman, o personagem central, muitas vezes conversa com figuras do presente e do passado ao mesmo tempo. Como o próprio Miller faz questão de enfatizar, não se trata de um flashback, porque, no caso, o passado e o presente se misturam completamente.

Não sei se foi por causa do recurso do Miller, mas no meio da leitura da peça eu comecei a me lembrar do quarto do meu tio-primo Afrânio, que morava no Paraguai. Explico: meu tio-primo era um grande colecionador de Playboy e tinha, inclusive, essa da Xuxa. Eu devia ter uns dez anos e ele uns dezesseis, quando fui visitá-los em Pedro Juan Cabalero (cidade paraguaia que faz fronteira com Pontaporã, no Mato Grosso do Sul). O Afrânio me levou ao quarto dele e eu fiquei maravilhado ao ver aquelas paredes forradas de mulheres peladas. Acho que tinha até no teto. Ao lado da cama, tinha uma pilha respeitável de Playboys, da qual ele sacou a da Xuxa que, àquela época, devia estar no início do reinado na Rede Globo. Pois é, àquela época, a Playboy da Xuxa já era um mito. Quando eu contei na escola que havia visto a foto da Xuxa com o bundão arrebitado, meus amigos quase me bateram. Hoje, então, acredito que essa porra virou relíquia (vocês podem dizer que com a Internet ficou moleza ver essas fotos, mas não é a mesma coisa). Mas daí a pagar 150 reais vai uma distância. Enfim, tem louco pra tudo neste mundo.

Tio-primo? Também explico. Meu avô, depois que a minha avó morreu, casou com uma paraguaia uns quarenta anos mais nova que ele. Eles tiveram dois filhos: o Afrânio e o Chico. De acordo com as tradições familiares da nossa sociedade, eles são meus tios, mas, de acordo com o bom senso, são meus primos, já que o Afrânio é uns cinco ou seis anos mais velho do que eu e o Chico tem praticamente a minha idade (acho que um ano a mais).

A última vez que eu vi o Afrânio foi quando eu tinha 17 anos e fui pra Dourados pra me livrar do Exército. Pra quem não sabe, minha família exerce uma certa influência por aquelas bandas. Portanto, cuidado comigo. Quanto ao Chico, nem me lembro qual foi a última vez que o vi. Eu digo que a nossa mente é mesmo muito louca porque devia fazer muitos anos que eu nem me lembrava da existência deles. Eles, provavelmente, também não sabem mais que têm dois sobrinhos em São Paulo. De repente, foi ver a Xuxa de cartola, maiô e meia-calça pretos, com um sorriso de piranha e agarrada num cara vestido com uma máscara de coelho, pra eu voar em direção àquela casa no Paraguai. Porra, eles tinham um macaco de estimação e uma capela no quintal. E nós aproveitávamos a visita pra comprar besteiras - basicamente umas bolas de chiclete e um tênis horrível que a gente adorava, chamado chinesinho. Por lá eu também fiquei conhecido como Tomaz Obea, hombres y mujeres.

terça-feira, novembro 07, 2006

Sapato Assassino

Eu já falei aqui que, em tempos imemoriais, sofri de uma paixão insuportável por futebol. Eu era daqueles que assistiam a qualquer pelada, até ao glorioso e inesquecível jogo do Time A (amigos do Viola) contra o Time C (amigos de outro aí que eu não me lembro). Quando meu irmão (que também adora ver um joguinho) chegou em casa e me pegou vendo aquilo, a indignação estampada em seus olhos quase me assustou. Eu ainda tentei me defender, dizendo que o jogo estava emocionante, mas não colou e até hoje ele se utiliza desse podre do meu passado para me espicaçar.

Durante a minha trajetória futebolística, essa não foi a pior porcaria que eu já encarei. Fui testemunha in loco de partidas terríveis. Eu me lembro, particularmente, de um zero a zero entre Corinthians e Santos no Pacaembu que deve ter envergonhado aquele gramado que fora palco para tantos bailes que o Pelé aplicava no meu pobre time (ainda bem que eu não havia nascido). Foi um jogo tenebroso, em que o empate era bom pros dois, e não aconteceu absolutamente nada durante os 90 minutos. Deu vontade de reclamar no Procon.

Esses jogos terríveis, geralmente, proporcionam cenas dantescas, trombadas cômicas e chutões que nos colocam a questionar: esse cara é profissional? Sem falar nas entradas maldosas cometidas pelos cabeças-de-bagre de plantão. Eu lembrei essa merda toda (objetividade não é o meu forte) porque, durante esse feriado, aconteceu uma cena que me lembrou um desses jogos memoráveis: estava eu deitado na cama, ao lado da Vivi, quando ela decidiu ir até o banheiro. Eis que, no meio do caminho, havia um sapato. Do ângulo que eu estava, não deu pra ver detalhes, mas eu teria dado pênalti e expulsado aquele pisante, porque a Vivi foi, o pé ficou e foi a primeira vez que eu vi minha companheira sair do sério. Ela pegou o sapato e, com o rosto desfigurado pelo ódio, atirou-o com raiva para longe. Acho que ela ainda disse: "Sapato filha da puta!" - mas eu não anotei na súmula.

Infelizmente, a Vivi teria sido expulsa junto com o sapato, por ter revidado, mas eu jamais expulsaria a minha própria mulher. Esse negócio de que juiz de futebol é imparcial não existe. Resultado: a Vivi ficou com a região do dedinho completamente roxa e lá fomos nós ao pronto socorro do Santa Catarina.

Como eu não pude ver detalhes da cena do sapato, aqui vai a narração feita pela Vivi, que estava descalça: "Eu estava andando calmamente em direção ao banheiro, quando no meio do quarto havia esse maldito sapato. Isso é lugar de deixar o sapato? Eu tropecei no maldito e meu dedinho prendeu no laço do cadarço (veja só que sordidez). Assim sendo (ela adora usar essa expressão), meu corpo foi pra frente e meu dedinho ficou, fazendo créqui".

Não adiantou eu ter levado a Vivi pra passear de cadeira de rodas pelo corredor do hospital. Também de nada valeu eu ter ficado assistindo ao filme da Barbie na sala de espera enquanto ela tirava radiografia. E tampouco amenizou a minha culpa eu ter comprado um picolé de Diamante Negro: fui condenado sem direito a apelação por ter largado o meu sapato no meio do quarto. Não queiram saber qual foi a pena.

segunda-feira, novembro 06, 2006

Nota Cinco e Meio - Parte III

Para não dizer que o Ivan não fazia nada além de elevar o próprio ego milhas acima de tantas mentes contaminadas por lixo cibernético, é preciso registrar que ele gostava de passar exercícios livres de reportagem. Nós tínhamos que sair por aí atrás das notícias e voltar na aula seguinte com uma reportagem escrita. Sem orientação, porque ele dizia que as orientações não serviam para nada além de viciar o aluno, que estava na idade de treinar o faro. De qualquer forma, nosso mentor defendia que jornalismo não se ensinava. "Ou você nasceu pra coisa, ou é melhor se esconder dentro de uma sala acarpetada com ar condicionado". O papel dele, ali, era ajudar a desenvolver talentos, caso houvesse algum naquela sala. O restante que se preparasse para virar assessor de imprensa do pai Celso de Ogum, redator publicitário, ou vendedor da Natura.

Portanto, os tais exercícios livres de reportagem serviam para que o aluno descobrisse se tinha ou não vocação pra coisa. O verdadeiro jornalista iria pegar um ônibus e se enfiar na periferia da cidade, atrás da história de uma dona de casa que sustenta onze pessoas com um salário mínimo e ainda recolhe cachorros e gatos da rua; o verdadeiro jornalista iria seguir o catador de papelão até o lixão municipal e, lá, entrevistaria até os urubus. Depois, ele enfiaria o dedo sujo de merda na cara das autoridades; o verdadeiro jornalista não sossegaria até encontrar um desafio grandioso; o verdadeiro jornalista perderia noites de sono para entregar ao professor uma reportagem diferente, que escapasse das amarras da mesmice.

Mas os alunos voltavam com matérias feitas nas coxas, dez minutos antes da aula. Chegavam ao Ivan calhamaços de entrevistas com o vendedor de cachorro-quente da Rua Monte Alegre, ou com o dono da banca em frente à PUC, ou com o taxista que trabalhava no ponto ao lado da banca. O mais longe que alguém ousava pisar, no máximo do espírito aventureiro, era a três quarteirões dali, para realizar a centésima milionésima quinta reportagem sobre os flanelinhas que operavam ao redor da universidade.

Estávamos diante de uma disputa feroz entre a frustração e a mediocridade, entre a melancolia e o comodismo. Eu era capaz de imaginar o Ivan, com o rosto contorcido pela dor, tomando umas cervejas no boteco em frente à redação da revista Super Engine e lendo aquele monte de reportagens que mais lembravam redações com o tema: “minhas férias” – redações cheias de erros grotescos de crase e concordância, escritas por analfabetos de luxo que nunca botaram o tênis Nike fora do circuito 3Vilas: Madalena-Mariana-Olímpia. “Imagina se esse bando de bostinhas tivesse que encarar os carniceiros do DOPS e do CCC”, o Ivan diria a si mesmo, respirando fundo. Definitivamente, ele não ficaria só na cerveja. Aquele lixo todo só desceria com algo mais forte.

No dia da devolução das reportagens, todos entravam preparados para o fuzilamento, mas no segundo mês de aula, o Ivan já não tinha forças. Ele simplesmente devolvia os exercícios sem dizer nada, e nós guardávamos rapidamente aquelas redações que retornavam da mesma maneira que tinham sido entregues: sem nenhuma anotação, sem nenhuma correção de vírgula, sem nada além do número 5,5 no canto superior esquerdo da folha. Logo o professor recuperava o fôlego e retomava os porres, o saudosismo inoperante, a vida quase desesperadora na redação da Super Engine.

O resultado daquele choque de gerações era zero. O Ivan nunca contribuiu e nós nunca contribuiríamos em nada para melhorar merda nenhuma.

ESTA É UMA OBRA DE FICÇÃO. QUALQUER SEMELHANÇA COM FATOS E NOMES SERÁ MERA COINCIDÊNCIA.

domingo, novembro 05, 2006

Nota Cinco e Meio - Parte II

Aqueles adolescentes babacas, dos quais eu fazia parte, eram chamados de estúpidos, idiotas, vazios, cretinos, filhinhos de papai, preguiçosos, ignorantes, vendidos, insossos e outras coisas. Isso acontecia todas as aulas, invariavelmente. E os insultados saíam pelos corredores da PUC a dizer: nossa, o Ivan é foda mesmo; nossa, o cara é genial; nossa, aquilo é que é jornalista. Nunca se perguntavam: se esse sujeito é tão bom, por que virou esse alcoólatra de merda, editor de revista vagabunda, professor de uma matéria ridícula do primeiro ano de uma faculdade falida? Nunca se perguntavam, justamente, porque eram - eu inclusive - todos uns babacas, estúpidos, idiotas, vazios...

Uma vez eu arrisquei fazer uma crítica ao Ivan. Cheguei para a Débora e falei que o nosso querido professor estava prestes a culpar a nossa geração porque nós não havíamos passado pelos augúrios da ditadura militar. "Ele fala como se fosse preciso ter as unhas arrancadas para ser um bom jornalista". Eu já esperava por uma represália, já que a Débora, ainda por cima, trabalhava com o Ivan na Super Engine. Fui surpreendido quando ela me disse que não agüentava mais aquele boçal que, no fundo, não passava de um ególatra ultrapassado.

A Débora começou a trabalhar na Super Engine antes mesmo de entrar pra faculdade de jornalismo. De família dura de grana, ela sabia que, se quisesse realizar o sonho de ser repórter, teria que começar cedo. Caso contrário, seria inevitável encarar o emprego de caixa de banco. Com o salário que a Débora ganhava na revista, dava pra pagar metade da mensalidade da PUC. A outra metade foi lançada ao futuro com uma bolsa restituível. Que mulher. Não passou na ECA por duas vagas e ainda conseguia rir disso. "Já pensou? Eu não teria te conhecido".

Já pensei, muitas vezes. E não gostei. Sem a presença da Débora, teria sido muito difícil aturar aquela faculdade filha da puta; teria sido melhor acatar os conselhos do Ivan. É verdade que o Ivan enchia as nossas cabeças de abobrinha e que, na verdade, ele não passava de um verme. É verdade, porém, que a nossa turma era composta por idiotas completos que não queriam nada com nada. Ninguém por ali seria grande coisa na profissão - tirando a Débora e o Artur. Sim, o Ivan tinha razão em muitas coisas. O que me irritava é que o imbecil se dedicava exclusivamente a alimentar um ódio profundo ao jornalismo praticado hoje em dia e um desprezo absoluto por qualquer pessoa que não tivesse vivido a repressão dos anos 1960 e 70.

Em resumo, o Ivan não contribuía em nada para resgatar os tais valores que ele dizia perdidos. Como professor (assim como na vida), era um fracasso absoluto. Ele não fazia nada além de vomitar por uma hora e meia uma arrogância mofada e decadente. Em um ano de curso, o equivalente a umas sessenta horas - gastas basicamente com heróicas passagens de auto-promoção e críticas tão certeiras quanto vazias ao jornalismo da era da Internet - eu aprendi apenas uma coisa: o jornalista é uma das figuras mais abjetas que compõem a nossa democracia participativa.

Continua...