Não chega de pizza?
Meu destaque da semana que passou vai para a decisão do governo norte-americano de divulgar imagens de torturas realizadas por seus soldados, durante o governo Bush, em prisões no Iraque e no Afeganistão.
É claro que, quando organizações internacionais de direitos humanos denunciaram tal prática, o governo Bush tratou de desqualificá-las, dizendo que os presos sob tutela do governo dos Estados Unidos da América sempre teriam seus direitos respeitados (God Bless America).
Chega, então, um novo governo, liderado pelo democrata Obama, e resolve não só desativar a prisão de Guantánamo como tornar público aquilo que todos já sabiam, até por imagens feitas pelos próprios soldados, que haviam vazado e ganhado os quatro cantos do mundo pela Internet: que a prática de tortura nas prisões de guerra eram corriqueiras.
Quando aquelas imagens que estarreceram o mundo, de soldados americanos humilhando presos iraquianos de todas as formas, foram divulgadas, o então presidente Bush se mostrou indignado, e o teatrinho da democracia americana foi posto para funcionar. Afinal, aquela prática era inadmissível e os responsáveis seriam punidos - a velha história do mau soldado, como dizem aqui sobre os maus policiais.
Diante da atitude do novo governo dos Estados Unidos, é inevitável fazermos uma amarga comparação com o que acontece historicamente no Brasil. É tradição em nosso país haver uma espécie de acordo de cavalheiros entre governos que terminam e governos que começam. O novo governo se prontifica e não escarafunchar demais aquelas contas que não fecham direito, enquanto o velho governo se prontifica a fazer o mesmo futuramente.
O corporativismo rola solto no Brasil, só havendo sérias apurações internas quando há alguma denúncia alienígena que por ventura respingue nas páginas dos jornais. Nesses casos, as investigações são feitas, mas sempre com efeitos prospectivos, ou ex nunc, como gostam de dizer os juristas. Ou seja, o que passou, passou. Se práticas ilegais estivessem sendo realizadas, que ninguém mais, dali em diante, as realizasse. Sim, todos se fazem de arrependidos, prometem nunca mais praticar tais irregularidades e assunto encerrado.
Foi o que fizeram os deputados em relação às cotas de passagens aéreas cedidas a amigos e parentes. Foi o que fizeram todos os administradores públicos diante de todas as denúncias de mau uso do dinheiro público desde que o Brasil foi fundado. Investigações, aqui, no máximo, atingem alguns laranjas, outros testas de ferro, bois de piranha que são sangrados e atirados ao rio, para que o resto da manada continue atuando à vontade.
Um grande exemplo da nossa tradição em encerrar tudo com verdadeiras pizzadas foi o fim da ditadura militar. A anistia foi geral, todos foram perdoados e nada, nadinha foi apurado. Até o famoso arquivo secreto do exército, até hoje, não foi aberto, apesar das promessas feitas pelo nosso atual governo, que já está no poder há mais de seis anos.
Alguns ingênuos e outros tantos mal intencionados poderiam citar como exceção à prática do fisiologismo-corporativista o impeachment do Collor. Aquilo não foi exceção a nada. Simplesmente, a turma do Collor exagerou na medida e acabou derrubada pelos seus próprios comparsas, insatisfeitos com a divisão do bolo. Mesmo essa derrubada, pode-se dizer, foi muito, muito branda. Tanto que Collor hoje é um prestigiado senador, presidente de comissão e tudo, apesar de só querer saber de tirar uma licença de 120 dias atrás da outra. Quando Collor foi eleito senador, proferiu um discurso emocionado em plenário, cujo teor era a injustiça que sofrera. Diante daquelas patéticas palavras, todos os senadores, à exceção de Mercadante, só faltaram pedir desculpas de joelhos ao ex-presidente da nossa complicada república.
Desculpem-me, mas eu não consigo levar a sério esse papo de que a democracia brasileira, hoje, está consolidada. Mais que consolidadas estão certas práticas, certos conluios, certas atitudes de nossos governantes que, infelizmente, refletem a nossa mais que consolidada mania de querer levar vantagem em tudo. Ou alguém aqui não trafega pelos acostamentos de nossas engarrafadas estradas? E, por favor, traga-me uma pizza de mussarela que eu estou com fome.