Assim que abre o sinal e aquelas centenas de motos avançam em direção ao infinito, sempre me vem à cabeça a imagem daqueles filmes épicos que reproduzem grandes batalhas, do tempo em que os exércitos se locomoviam a pé ou a cavalo. Antes mesmo de ficar verde, os motoqueiros já estão acelerando, isso quando não queimam a largada e saem em disparada com o sinal vermelho. É o que eu vejo naquelas motos: guerreiros avançando sobre o inimigo. Bons tempos aqueles em que o pedestre podia atravessar a rua correndo durante aqueles segundinhos em que o motorista ainda não havia percebido que estava verde. Agora, esse lapso não existe mais. Se a vida dos pedestres paulistanos nunca foi fácil, depois da invasão das motocicletas a situação ficou ainda mais delicada.
Agora o sindicato dos motociclistas quer que a Prefeitura libere a circulação das motos nos corredores de ônibus. Agora não, porque a reivindicação é antiga, mas eles voltaram a reforçar essa história absurda. Absurda porque é óbvio que vai dar merda. É óbvio que vai ter passageiro de ônibus sendo atropelado às pencas por motoqueiros alucinados.
O que o sindicato não quer é que seja feita uma rigorosa inspeção veicular (muitas motos desreguladas poluem mais que um ônibus, além de não oferecerem segurança nem para o motoqueiro e nem para terceiros); o que o sindicato não quer é que seja feita uma regulamentação de trânsito para as motos. Aqui em São Paulo, os motoqueiros infringem impunemente todas as leis de trânsito e ninguém sabe o que fazer com eles.
Não adiantou morrer alguém famoso, quando, há alguns anos, o músico do Titãs Marcelo Fromer foi atropelado por um motoqueiro enquanto fazia cooper. Continuou tudo na mesma. O problema é que os motoqueiros são, eles próprios, grandes vítimas deles mesmos. Todos os anos, morrem milhares deles nas ruas de São Paulo. Eu mesmo já vi motoqueiro estirado no chão mais de uma vez (que paulistano que não viu?) e, outro dia, em frente à Praça João Mendes, presenciei um deles se chocando com um táxi. O acidente aconteceu porque o motoqueiro pensou que o táxi, que estava na pista da esquerda, fosse virar, e se pôs bruscamente à frente do táxi, que não virou e acabou pegando o motoqueiro. Eu sei, ficou muito confuso (eu sou péssimo em descrever caixas de fósforo e em vender tijolos), mas, na prática, o motoqueiro fechou o táxi, que não conseguiu frear.
Na segunda-feira passada, um cara que trabalha aqui comigo foi atropelado por uma moto. O motoqueiro se mandou e ele foi levado para a Santa Casa por uns PMs. Como no caso do Marcelo Fromer e no desse cara que trabalha comigo (fiquem tranqüilos, ele está bem), o motoqueiro fugiu. Aliás, como na maioria dos casos. Mas isso não é "privilégio" dos motoqueiros. A maioria dos motoristas, com medo da responsabilidade, costuma picar a mula, como aquele imbecil, esta semana, que atropelou uma família de evangélicos, matando, se não me engano, cinco pessoas. Vamos mais longe, cert0? A maioria das pessoas, sejam motoristas ou não, diante de uma situação em que tem que arcar com uma responsabilidade enorme dessas, pica a mula.
Que nenhum sindicalista fique bravo comigo e queira me atropelar, ou quebrar o espelhinho do meu carro (mesmo porque eu não tenho carro, então o cara vai querer quebrar o espelhinho do carro da Vivi, que não tem nada a ver com o pato). Eu entendo a situação. Os motoqueiros, em geral, são pessoas duras de grana, trabalhando por uma ninharia e precisando fazer o máximo de entregas por dia pra conseguir levar uma grana pra casa. Eles são as bestas do apocalipse, que correm a mil por hora no meio dos carros, anunciando o fim dos tempos. Eles são um instrumento do sistema, massa de manobra, um dos tantos reflexos da nossa sociedade miserável.
Sei de tudo isso. É por isso que eu não estou preocupado com os espelhinhos dos carros, como muitos almofadinhas e dondocas. Eu estou preocupado com as milhares de mortes de motoqueiros e de vítimas da imprudência desses guerreiros de duas rodas. Motoristas de carro também matam gente pra caralho? É óbvio, isso aqui não é uma competição mórbida. O fato é que existem alguns mecanismos para coibir os imprudentes motoristas de carro. Se não tem nenhum deles preso por ter atropelado e matado pessoas inocentes, isso é outra discussão. Agora, quanto aos motoqueiros, até pela maioria deles ser gente pobre, morre um monte todo ano e nada se faz. Até por eles estarem a serviço da própria elite (entregando comida, documentos e sabe-se lá o que mais), ninguém diz nada. Todo mundo aceita o alto preço da entrega eficiente. Afinal, a fome (seja do que for) não pode esperar.
Aí, vem o Kassab, inventa essa tal de "faixa-cidadã" em duas ou três avenidas e pronto, pode dizer que fez alguma coisa. Tem que fazer uma porrada de coisas, e não promover dois ou três factóides. Primeiro, tem que regularizar a profissão dos motoboys (leia-se: promover políticas para tirá-los da informalidade); tem que coibir as empresas em geral, e essas companhias de entrega em particular, de continuarem tirando o sangue dos motoqueiros até a última gota; tem que proibir as motos de circular no meio dos carros livremente; tem que dar um jeito de fiscalizar essas máquinas de poluição e de falta de segurança; tem que fiscalizar os motoqueiros infratores; tem que fazer uma porrada de coisas, mas tem que fazer. Não dá pra morrer esse monte de gente todos os anos. O atual preço da entrega eficiente, meus senhores, está alto demais.
OBS: Minha intenção inicial não era escrever nada muito sério, mas os meus pensamentos, tão logo o sinal ficou verde, dispararam em direção ao infinito e eu perdi o controle.