sexta-feira, novembro 28, 2008

Homo sapiens (Homem sábio)

Você já imaginou sua vida nas mãos de um canalha? Você está ali, pendurado pelos braços, prestes a dar um mergulho sem fim do alto de um precipício. Eis que chega um sujeito e ajoelha ao seu lado, como que a admiriar o esforço hercúleo que você está fazendo para prolongar sua vida por mais alguns segundos.
Quanto tempo a mais você teria? O tempo daquele sujeito fumar um cigarro, que ele acende calmamente enquanto olha nos seus olhos? Ele sorri, quase com ternura. E você evita encará-lo, na tentativa de concentrar toda a força que lhe resta nos membros superiores.
O canalha continua sorrindo. Ele parece dizer, com aqueles olhos ternos: "Se você tivesse dedicado mais tempo a levantar pesos na academia em lugar de comer bistequinhas de porco, talvez conseguisse sobreviver por mais um ou dois cigarros.
Finalmente, ele diz, com toda a calma: "O ser humano, à medida que evoluía para a postura ereta, seus braços perdiam força. Era inevitável". No meio dessa frase, você despenca, de costas, rumo ao nada.
Resta saber como será o seu fim. Você pode se chocar contra a montanha, até que seu corpo se transforme numa pasta disforme (que me perdoem a rima macabra); um ataque cardíaco pode abreviar esse último momento; o intenso fluxo de ar que invade seus pulmões pode matá-lo. Também pode acontecer tudo isso ao mesmo tempo. Ou outras coisas. Os especialistas podem discordar desse relato e apresentar um diagnóstico preciso.
Voltando ao canalha, ele poderia ser qualquer pessoa, porque, se você tivesse ficado lá em cima por mais tempo, teria ouvido os seguintes pensamentos: "À medida que o ser humano evoluía para a postura ereta, ele se afastava da condição de animal irracional e, era inevitável, ficava cada vez mais mesquinho, mais canalha, menos peludo e menos confiável".
Para onde poderiam seguir esses pensamentos? Mergulhariam em direção ao nada, ou fariam transbordar um cesto lotado de bolinhas de papel. Inevitavelmente. Sim, porque, avaliar a canalhice como condição inerente à raça humana é o que o próprio ser humano mais tem feito nos últimos cinco mil anos, desde o Velho Testamento e da Ilíada até o último grande sucesso de vendas que será lançado nos próximos dias.
Ora, até a Carolina Dieckmann já percebeu que o mundo não é lá uma maravilha. Parece que a moça desconfia daqueles que são todo sorrisos. Eu também. Aliás, se eu fosse bonito, famoso e tivesse a barriga de tanquinho, eu também não ia querer ser simpático cem por cento do tempo.
Porque nós, artistas, também temos problemas. Nosso trabalho é estressante, nós temos contas a pagar e perdemos faz tempo o direito, garantido constitucionalmente, à privacidade. Não podemos acordar de mau humor, senão o grande público nos condena, e nós logo viramos motivo de chacota de pseudo humoristas que vivem de humilhar os outros, sejam famosos ou não.
Nós, artistas, temos que interpretar um canalha, sádico, vigarista, que sente prazer ao ver um sujeito despencar do penhasco e, depois, temos que nos virar para garantir uma boa noite de sono. E quantas vezes nós temos que morrer, das mais diferentes formas?
Parece que ninguém pensa nisso. Parece que todos estão ocupados em analisar o quão filho da puta é o outro. E a mim, que não sou artista, resta trocar o lixo.