quinta-feira, agosto 09, 2007

Fábula

Era uma vez, um ensaio de um ensaio sobre o óbvio:

Falemos do óbvio. Eu não saberia falar de nada além dos traços nítidos que os movimentos da humanidade riscam no chão. Algumas pegadas ficam, outras são bem apagadas e, outras ainda, são forjadas. Tudo muito óbvio, é claro.
E como eu pretendo ser, em breve, um profissional do óbvio, resolvi colocá-lo em pauta. Quero que fique claro, apenas, que tenho plena consciência de quão fúteis são as minhas palavras. Toda essa futilidade, infelizmente, contribui ainda mais para que os traços da humanidade pareçam tragicamente gravados, com uma nitidez completamente obscena.
Da obviedade da política. Miremos os pólos que consistem o quadro político de nossa sociedade. Separados por um verdadeiro mangue, um lodaçal de idéias, anseios, projetos estapafúrdios e não-projetos da maior pertinência, encontram-se a situação e a oposição, respingados até a alma por todos os elementos do pântano político. Sim, eles são constituídos pelo mesmo caos que, ilusoriamente, parece separá-los.
Imaginemos agora, um governo qualquer. O que faz o governo, além de espalhar em todas as direções possíveis, seus louváveis feitos em prol da comunidade? O pensamento no bem comum. Diz o governo qualquer: “o muito que acertamos e o pouco que erramos (há que se parecer humilde) sempre foi e sempre será feito com o intuito de melhorar as condições de nosso povo. Sabemos que ainda há muito a ser feito, mas…”.
Todo e qualquer governo tem uma oposição, seja ela manifesta ou latente. É o grupo que não faz outra coisa além de espalhar as patetadas e as atividades ilícitas cometidas pelo governo. Diz a oposição do governo qualquer: “o governo não fez, até o momento, nada que preste (há que se parecer agressivo). Todos os atos dos que aí estão a governar, resumem-se a bravatas, factóides, atitudes próprias de um bando de despreparados e, muitíssimas vezes, levianos, que não queriam nada além de assumir o poder e, com isso, trair a confiança da população”.
O lodaçal, infestado por figuras que, com uma mão, cumprimentam os governantes e, com a outra, sinalizam com a oposição, completa este triste quadro. Faltam detalhes, bem sei. Mas o óbvio aí está. E é dele que prometi tratar.
O óbvio insultante, nojento, nauseante e pérfido é: em todo esse exercício de retórica, praticado por aqueles que visam sentar ao trono, quem menos importa é o povo. Descobri a pólvora, não? Descobri. Milhares de anos depois dos chineses. E ainda tem gente que se machucaria com essa minha invenção.
Isto, claro, caso minha voz tivesse uma mínima importância em nossa sociedade. Mas eu sou apenas mais um, uma pessoa óbvia que, caso fique com um revólver apontado para o rosto, jamais será socorrida pelo governador.
Suponhamos, então, algo realmente absurdo, quase surreal aos ouvidos de amantes do classicismo. Suponhamos que algum político, seja da oposição, seja da situação, tome conhecimento de minha óbvia teoria e, ainda por cima, resolva dignar-se a me responder.
O político, ao ouvir minhas pobres palavras, assustadoramente mal escritas, leves sombras de uma tentativa patética de elaborar uma crítica, ri às gargalhadas. Ele, com o olhar mais zombeteiro que consegue construir em sua face, encara-me e diz:
-- Amigo, você é um analfabeto político. Já leu Marx? Já leu Maquiavel?, Adam Smith?, Platão?, alguém da Escola de Frankfurt?, da Ecole des Anale?
Depois de enfileirar mais uma dezena de nomes de pensadores aos quais nunca ouvi falar, o político, como se fora um elefante face a uma formiguinha, resolve tomar da piedade de Tristram Shandy e, ao invés de me esmagar, apenas me dá um peteleco para longe. Do alto de sua piedade superior, frente a um ser tão lheguelhé, diz que “há lugar no mundo para nós dois”.
Ao se afastar, o político ainda volta a cabeça para trás e dá um conselho valiosíssimo, assim, de graça – oh, que homem soberbo – : “estude, meu rapaz. Quem sabe um dia nós voltamos a conversar”.
Pólvora? Não, bala de festim. Não obstante, quando o mesmo político está deitado em sua confortável cama, ao lado de sua adorável esposa, ouvindo o agradável barulho da chuva que cai lá fora – agradável pra nós, que estamos aqui dentro –, ele chega a confessar por um pequeno instante, que a formiguinha tem lá sua razão. E como tem!
A confissão logo dá lugar a uma série de pensamentos agradáveis e ele se vê fortalecido, pronto para, no dia seguinte, repelir quantas formiguinhas for necessário. O político ainda sorri e pensa: “preciso concentrar meus esforços para combater o leão”.