Tio Bá
Posso me considerar um paulistano privilegiado. Porque eu passei muitas e muitas férias na minha infância a me divertir na fazenda do meu tio Osmar, o querido tio Bá, perto de Dourados, no Mato Grosso do Sul (é, lá onde prefeito andou sendo preso e parece que foi solto hoje). Lá eu fazia coisas que poucos garotos da cidade grande têm a oportunidade de fazer, como beber leite sem atravessadores, diretamente da vaca; pescar, nadar e comer ingá na beira do rio; comer manga no pé, melecando a cara inteira com gosto; andar a cavalo até cansar, me sentindo um boiadeiro a tocar o gado pasto afora; carpir o mato na enxada; jogar truco e beber tereré na varanda; jogar bola na grama em frente à casa na maior chuva; consertar cerca com pé-de-cabra; até ter que limpar o rabo com o sabugo do milho eu tive que fazer em um dos meus desarranjos no meio do mato. Antes que os paulistanos maldosos pensem besteira, o sabugo é aquela palha que envolve a espiga.
É claro que esse negócio de usar enxada e pé-de-cabra era mais uma brincadeira, ainda mais para um garoto que vinha da cidade grande e não tinha muito costume de fazer trabalhos braçais. Tanto que uma vez eu fiquei com calo na mão e meu tio, orgulhoso, falou que aquilo sim era mão de macho. "Guri, macho", ele dizia. "Esse guri é macho até debaixo d'água", ele repetia, e eu ficava orgulhoso que só. Sim, o tio Bá era um cara rude, mas com um enorme coração. Eu tenho muita saudade dele. Depois de um dia inteiro de trabalho na roça, o tio Bá gostava de tirar a botina, sentar na varanda e contar suas histórias tomando tereré, ou uma boa cachacinha, é claro. E eu ficava ali, admirando, querendo ser que nem ele. Muitas vezes ele prometeu me levar para pescar no Pantanal, mas, infelizmente, essa não deu pra cumprir.
"Ê mundão velho sem porteira", ele dizia. Mas o mundão, tio, infelizmente, está cada vez mais cheio de porteiras, de lugares privativos, de "ala vip". E as pessoas, cada vez mais, a fim de se esconder da realidade, entocam-se em bolhas, em redomas, e colocam grades com cercas eletrificadas nas suas casas e muros cada vez mais altos. Não é nada daquela liberdade que nós tínhamos na fazenda. A liberdade era tanta que meu pai ficava até assustado quando me via a correr descalço pelo mato atrás de vacas fujonas. "Tomaz, aqui tem cobra", ele brigava. E eu argumentava que se aparecesse uma cobra a vaca perceberia, e daria tempo de eu fugir. Coisas de moleque.
Tenho saudade do tio Bá, da minha infância e daquela liberdade toda. Outro dia, eu encontrei o Márcio, um grande amigo do meu pai, que muitas vezes ia conosco ao Mato Grosso do Sul, e ele disse: "Nós éramos uns pais irresponsáveis. Deixávamos a criançada toda solta pela fazenda, nadando no rio, correndo pra dentro do mato. Não sei como nunca aconteceu nada". É, o máximo que aconteceu foi pisar em espinho, ralar joelho, coisa pouca. Podia ter acontecido algo pior, é claro, mas eu acho que a nossa vida aqui na cidade grande é muito mais perigosa.
Lembrei do tio Bá e do mundão velho sem porteira porque hoje eu estava a pensar nessa história da Folha de S. Paulo conseguir censurar o site do Lino e do Mário e esse mandado de prisão mais do que suspeito emitido pela Interpol contra o Julian Assange, do Wikileaks. É a tentativa de colocar porteiras no mundo virtual, porque o mundo concreto já está forrado delas. A Internet virou o novo alvo dos cerceadores de liberdade, muitas vezes travestidos de "paladinos da moralidade". É claro que deve haver um controle, porque essa liberdade toda também serve para os pedófilos, para os racistas, para os neonazistas, mas esse negócio de colocar porteira me incomoda. Sempre me incomodou.
Porque está cheio de falso moralista louco pra proibir tudo. Faz uns dias e saiu na própria Folha de S. Paulo que tem gente pensando em parar de adotar os livros do Monteiro Lobato por ter conteúdo racista. Se for assim, minha gente, vamos logo proibir toda a literatura do Século XIX pra trás. Esse negócio de proibir, definitivamente, só piora as coisas. Não dá pro sujeito chegar na Rússia, um dos países mais católicos do mundo, e proibir o culto à religião porque o Marx escreveu que a religião é o ópio do povo. Claro, os caras tentaram. A União Soviética instaurou o ateísmo como religião oficial. Sim, porque o ateísmo, paradoxalmente, virou uma religião como qualquer outra, cheia de doutrinas e proibições.
Eu sei, estou indo longe. Comecei lá no Mato Grosso do Sul e cheguei na União Soviética. Mas é assim que eu gosto. Quando eu escrevo, esqueço das porteiras e posso mandar os caras da Interpol à merda. E posso mandar o Tavinho Frias à merda e todos esses instaladores de porteiras à merda. VÃO À MERDA.
E viva o Wikileaks, e viva o fAlha de são paulo, e viva o Tio Bá. Viva a liberdade, mesmo que ela possa causar problemas e estragos mil. Eu sei que tem cobra no mato, pai, mas vale o risco.
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