Luta de Classes
Confesso, imbuído de vergonha, que só hoje eu li o famoso texto da Maria Rita Kehl que causou sua demissão do jornal O Estado de S. Paulo. Em primeiro lugar, quero dizer que, quem perde com essa demissão é o próprio jornal e, principalmente, seus leitores. É uma pena mesmo, porque, num jornal conservador e pesado como o Estadão, uma colunista como Maria Rita Kehl dava uma boa arejada, assim como os textos do Luis Fernando Verissimo e do João Ubaldo Ribeiro.
Bom, eu não sou leitor do Estadão e, tenho certeza, logo a Maria Rita Kehl será convidada a trabalhar em algum veículo menos imbecil da grande imprensa, porque o que o Estadão fez foi isso: uma imbecilidade sem tamanho. Logo, pensando bem, quem mais perdeu mesmo foi o Estadão, que, além de tudo, deu um tiro no pé, porque, além de ter perdido uma ótima colunista, essa demissão pegou muito mal.
Para resumir o conteúdo do texto da psicanalista, para quem não leu (quem quiser ler, está na íntegra, logo abaixo das minhas baboseiras), ela refuta a velha e preconceituosa tese de que pobre não sabe votar e, se os instruídos fossem maioria, sempre ganharia a eleição aquele que tem a melhor proposta para o País. Ou seja, para a elite preconceituosa, se Dilma ganhar, os incultos e ignorantes vencerão mais uma, assim como Lula já venceu José Serra e Geraldo Alckmin.
Essa visão preconceituosa é largamente patrocinada por todos os veículos da grande mídia, leia-se: Globo, Abril, Folha, Estado e outros pelo Brasil afora. Aqui, digo que concordo com a opinião da Maria Rita Kehl, logo no início do texto, de que o Estadão adotara uma postura mais digna ao assumir que apoia o candidato Serra, enquanto toda a grande imprensa também o faz, mas de maneira "velada", se assim podemos dizer. O problema, na verdade, não é o Estadão e toda a grande imprensa apoiar Serra; o problema é esse apoio influenciar o conteúdo jornalístico dessas publicações.
Voltando ao discurso preconceituoso apontado pela Maria Rita Kehl, discurso esse que busca desqualificar o voto dos pobres e, consequentemente, transformar o voto da elite instruída em um voto mais valioso que o dos miseráveis, analfabetos, ignorantes. Por que a imprensa prolifera essa ideia e, por que os donos do Estadão ficaram tão ofendidos com a Maria Rita Kehl? Só porque ela denunciou e desconstruiu esse discurso maldoso? Sim, a autora nada fez além de mostrar que essa ideia de que pobre não sabe votar é, além de uma grande filha-da-putice da classe dominante, capenga e facilmente descartável, do ponto de vista acadêmico.
O Estadão ficou puto da vida com a Maria Rita Kehl, não porque a opinião dela diverge da linha editorial do jornal, mas porque algúem que estava na folha de pagamento do jornal ousou negar o discurso que para toda a grande imprensa, principalmente a escrita, lhe é mais caro. Para Folha, Estadão, Veja e companhia, a mensagem é a seguinte: se esses miseráveis tivessem acesso à informação de qualidade (ou seja: Veja, Folha, Estado etc.) o resultado das eleições não seria esse que temos visto nos últimos anos; se esses ignorantes lessem (e entendessem) Folha, Veja, Estado etc, jamais um Lula (credo, que nojo!) teria governado o país por oito longos anos. Pois é, e agora esses miseráveis ignorantes querem emplacar essa cria do barbudo, esse fantoche do Grande Ignorante? Tenha dó!
Pois é, e quando alguém lembra que a televisão chega à casa dessa gente e, se a televisão representa o mesmo discurso elitista despejado pela imprensa escrita todos os dias, por que esses ignorantes não passam a votar direito? Ora, aí entra o Hélio Jaguaribe para dizer que os pobres só pensam neles mesmos e eles têm medo de perder essa boquinha chamada "bolsa-esmola", enquanto os ricos, os instruídos, os elitizados, esses não, esses pensam no que é melhor para o País (assim como Veja, Folha, Globo, Estado etc.) Chega a ser risível, não é mesmo?
Essa elite é mesmo cara-de-pau, porque, se dependesse dessa gente (representada por Veja, Globo, Estado, Folha etc.), o Brasil não seria muito diferente da colônia que já foi um dia, recheado, apenas, por uma classe média consumista que sonha em ser rica e comer a Carolina Dieckmann, e que vai comprar Veja, Folha, Estado etc, além de assistir à Rede Globo, é claro.
Ora, escrevinhadeiro - provoca-me o advogado do diabo. Mas não seria bom para a Veja, Estado, Globo, Folha etc, que o máximo de miseráveis saísse da condição de miseráveis para, enfim, poderem consumir Veja, Estado, Folha, Globo etc? Aqui reside um problema, apontado pela própria Maria Rita Kehl quando ela diz no texto o seguinte: "Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições". É, é um problema quando os miseráveis não querem mais trabalhar por um salário de fome e quando eles começam a se politizar, porque, nesse momento, eles percebem a quem reperesenta o discurso de Folha, Veja, Estado, Globo etc.
E que classe representam Veja, Folha, Estado, Globo etc, senão a classe patronal, aquela que adorava "contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos"? Percebe o desastre? Porque os ex-miseráveis, além de não quererem mais trabalhar por um salário de fome, talvez não queiram ler Veja, Folha, Estado etc, porque eles vão perceber que o que está ali, em lugar de conteúdo jornalístico, nada mais é que um discurso elitista e preconceituoso que procura desqualificar, justamente, as pessoas verdadeiramente responsáveis pelo crescimento do País: a classe trabalhadora.
Não sou ingênuo a ponto de acreditar que o Partido dos Trabalhadores esteja, de fato, do lado dos trabalhadores. Nunca a elite coronelista faturou tanto quanto nesses oito anos de governo Lula e, nunca, alguém que de fato estivesse do lado dos trabalhadores chegaria ao poder no nosso complicado país. Mas, não dá pra negar que, pela primeira vez na nossa curta história, alguém fez algo para tirar milhões de pessoas da miséria.
Segue o texto da Maria Rita Kehl:
Dois pesos...Maria Rita Kehl - O Estado de S.Paulo
Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores que apoia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela Presidência da República. As campanhas, transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o jogo é duro.
Se o povão das chamadas classes D e E - os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil - tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política. Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de bolsa-esmola.
Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia feita por "uma prima" do autor, residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. R$ 200 é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.
Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes disso. Passava-se fome, na certa, como no assustador Garapa, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os dias. Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A Bolsa-Família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto da turma da "esmolinha" é político e revela consciência de classe recém-adquirida.
O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da Bolsa-Família, que apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou esse efeito de "acumulação primitiva de democracia".
Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano.
Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.
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