Fim da linha
Acordei no meio da noite com alguém me chamando. Ainda sonado, eu não conseguia entender de onde vinha aquela voz com sotaque do interior do Paraná. Intrigado, resolvi segui-la. Quando abri a porta do banheiro, de onde parecia vir aquele chamado, dei de cara com um sujeito de calça arriada, lendo uma revista. Quando ele me olhou, precebi que fumava um charuto. "É bom pra disfarçar o cheiro", ele disse entredentes.
Eu devia perguntar o que aquela figura estranha estava fazendo no meu banheiro, as duas da matina, cagando e lendo a Veja. Mas, não sei por quê, parecia que eu o conhecia intimamente. Não perguntei nada e pensei em virar as costas e voltar para a cama. Eu estava no meio de um sonho com a Camila Pitanga e, sei lá, se eu tivesse um pouco de sorte, talvez faturasse.
Calmamente, ele se levantou da privada, levantou sua calça de couro justa, estilo vocalista de banda de rock dos anos oitenta, e anunciou que era funcionário de Hades, mostrou-me sua carteirinha funcional com uma foto horrível, e que eu estava convidado a acompanhá-lo, conseqüência natural de ter jantado uma pizza inteira de calabresa apimentada, com todinho e doce de mocotó de sobremesa. "Nem Hércules sobreviveria a tamanho desafio".
Tecnicamente, eu estava morto. Perguntei se existia aquele negócio de céu e inferno e se eu podia levar um Sudoku que eu não havia terminado. E se lá eu poderia sonhar com a Camila Pitanga. Calmamente, ele respondeu que aquela lógica dicotômica de razão e emoção, certo e errado e céu e inferno havia sido proliferada por dois aloprados chamados Sócrates e Platão - para a morada de Hades iam todos, dos grandes gênios como Charles Chaplin aos filhos da puta que jogam chiclete nos mictórios; eu não poderia levar nada além da minha roupa do corpo (uma calça de moleton velha da adidas e uma camiseta da Gaviões da Fiel com os dizeres: lealdade, humildade, procedimento); eu poderia sonhar com quem eu quisesse.
Descemos para a rua. Ele parou para comprar um Hollywood e perguntou se eu queria alguma coisa. Pedi um picolé de tangerina. Seguimos um longo caminho, para além da Ceilândia, até um rio. O sujeito começou a chamar por Caronte. E nada. "Aquele velho preguiçoso deve ter cochilado de novo". O tal Caronte finalmente apareceu, vestido com uma calça de capoeirista, pedindo desculpas pelo atraso. "Você precisa ver como estão as coisas no Tietê".
Navegamos por muito tempo na barca velha de Caronte (tão velha quanto ele) até que chegamos ao mundo dos mortos. Senti-me aliviado, pois Caronte falava mais que um barbeiro e um taxista juntos. Logo de cara, comprovei com meus próprios olhos que o cachorro de três cabeças existia mesmo. Tratava-se de um fox paulistinha mutante que só se alimentava com ração dietética.
O lugar era escuro e úmido. Não havia fogo, ou pessoas sendo torturadas. Só não tinha muito o que fazer. Então as pessoas se sentavam nas ágoras e jogavam dominó com peças invisíveis. E discutiam a polêmica final do campeonato matogrossense de 1957. E outros assuntos importantes dos quais elas se lembravam.
Na verdade, não se lembravam mais de muita coisa. Por sorte. Mas perguntavam aos recém chegados como andavam as coisas na Terra. Falei que a popularidade do Lula estava alta, que o Avaí havia subido para a primeira divisão e que por pouco o Bush não leva uma sapatada nas fuças. Alguns riram, uns mais antigos perguntaram quem era o tal de Lula e outros tantos fizeram mais perguntas, as quais tentei responder da melhor forma possível.
Infelizmente, eu não sabia quem era o presidente da Estônia (ou se lá existe um presidente), qual time havia sido campeão armênio de basquete e se a miss universo era mesmo russa. Cansado, eu me sentei em um canto e tentei cochilar um pouco.
Acordei com alguém me chamando. Não era Caronte, muito menos a Camila Pitanga. Não. Tratava-se de outro funcionário de Hades, que também me mostrou sua carteirinha funcional. Chegara o momento de conhecer o chefe supremo do submundo. Eu só precisava aguardar uns minutinhos na sala de espera.
(To be continued)
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