quinta-feira, agosto 02, 2007

Se acaso me quiseres…

Ou Dadaísmo mental

Coisas boas são muito difíceis de acontecer. Você não pode perder essa oportunidade. Perca peso, pergunte-me como. É pau, é pedra, é o fim do caminho. Um hidrante desses não deve funcionar mais. E puseram sal demais na lasanha. Tudo isso num dia só. Tudo isso aconteceu no intervalo de vinte e quatro horas. Uma mulher chateada com a vida disse à amiga, dentro do elevador, que coisas boas são muito difíceis de acontecer, enquanto tragédias pipocam aos montes.
A televisão disse, com voz clara e cores gritantes: você não pode perder essa oportunidade. Só um idiota completo deixaria passar uma promoção incrível dessas. O anunciante deve estar louco para oferecer algo desse tipo. Quanto você pagaria? Não responda. Você ainda ganha esse incrível massageador anatômico, com cinco velocidades, para se esquecer da surra que leva diariamente.
Um vendedor da Herbalife veio encher o saco com essa. Ele queria vender um suco de cor estranhíssima, jurando que ali boiava a solução para todos os problemas da obesidade. Suco esquisito, não sei mais quantos produtos e veja só: estou com 52 anos e sou magro e feliz. Você pode, você deve. Você compra e resolve, como todas as coisas atualmente. Pra que sofrer, oras?
Que mais? Elis Regina fazendo za-za-zi-za-zá, dzu-dzi-dzi-dze-dzê, e é pau, é pedra, é o fim do caminho. No meio do caminho havia uma pedra, alguém comentou. Havia uma pedra no meio do caminho, outro alguém completou. Zi-zu-za-ze-zê, uma risada e todos aplaudindo a improvisação ensaiada da bossa-nova. Plim-plim, plim-plim, é o fim do caminho, é um resto de toco.
Um hidrante velho, encostado tristemente no canto de uma calçada esburacada. Os transeuntes que passam, passavam e continuarão passando, não, eles não se dão conta, não se deram, não se darão. Se pegar fogo, não tem o que fazer. O fogo se alastra, chega na estação e pronto. Tragédia estampada nos jornais. Deterioração do espaço público e que se dê descarga para levar tudo e não ficar esse cheiro de merda. Merda de hidrante velho.
O pior não é o hidrante que não funciona. O pior é comer aquela lasanha do boteco da Maria Paula e depois não encontrar água no bebedouro da repartição. Aquela lasanha feita com queijo-prato e presuntada e uma massa horrível e um molho de tomate doce e uma carne moída que nem os pombos da Praça da Sé gostariam de comer. Eles preferem beliscar pedaços de abacaxi que são vendidos dentro de um saco plástico.
Isso sim é o fim do caminho. Quando você dá de cara com uma infeliz que comenta dentro de um elevador lotado o quão infeliz é a vida. Infeliz que prolifera a infelicidade e que não quer saber de comprar suco de ervas que deixou a recepcionista balofa com um corpo de modelo e atriz. Ninguém queria comer aquela infeliz e agora todos fazem fila. E ela não esnoba não. Ela só quer saber de tirar o atraso e nada, nenhuma pedra no meio do caminho a impedirá. E é pau. E o resto de toco que fique com a risada da Elis Regina.
O hidrante não funcionaria nem a pau, nem a pedra, de jeito nenhum. Esquece, Existem outras maneiras de matar a sede. Existem outras maneiras de enlouquecer, sem precisar da repartição, que não tem ninguém lá que saiba repartir. Lasanha salgada da moléstia. E não esqueça: você não pode perder essa oportunidade. Se você perder essa oportunidade todos te chamarão de cretino por dias e dias seguidos. Não tem água no hidrante, não tem água no bebedouro, não tem água potável no planeta. Então foda-se. Os loucos querem dormir em paz. Eles querem sonhar que estão fazendo sexo com uma balofa que imita a Elis Regina enquanto trepa. Za-zu-zi-zo-zê, a-za-zu-za-ze-zê. Não irrita, Maria. Maria, não irrita.
Mas logo começa outra. Outra música no rádio. Um pedido de uma ouvinte triste e gorda que vomitou um suco de cor verde no chão da repartição. Lá, eles nunca trocam os galões de água. Como pode gastar tanto dinheiro com coisas supérfluas que não funcionam? Não há hidrante que agüente. Mas, olha, começa outra música no rádio. “Se acaso me quiseres…” Eu não sou dessas, não senhor. Isso repete a gorda, olhando para a foto do pai dos pobres.
Eu não sou dessas, ora. Imagina só, se vender por causa de um falso brilhante. Se ao menos fosse verdadeiro. Na novela aconteceu de substituírem um colar verdadeiro por outro falso. Ou o contrário. Sei lá e o que importa? No final, é sempre igual. E na vida real, a secretária obesa jamais virará uma modelo gostosa. Não, senhor. Mesmo assim, fazem fila na porta dela. Fazem fila e sempre assobiam quando ela passa. “Se acaso me quiseres…”. Ora, não me venha com essa de que você não é dessas. E nem daquelas.
A moça, nem gorda e nem magra, nem dessas e nem daquelas, que não gosta de Elis Regina e tampouco de qualquer tipo de música cantada em português: a moça quis sair da repartição para nunca mais voltar. Sim, senhor. O vendedor da Herbalife a convenceu a participar da pirâmide do sucesso. Chega de querer tomar água sem ter água no galão. Chega de querer apagar incêndios sem haver um hidrante que funcione. Ora, ninguém é dessas ou daquelas. E se for? Se for já foi, porque a moça se foi e a gorda ficou sonhando, enquanto o pai dos pobres pareceu soltar um sorriso.
Nada mais foi dito. Nada mais foi dito. Compre-me um Sonho-de-valsa. Mas não dê dinheiro aos pedintes porque você nunca sabe. Você nunca sabe. Outro dia, o pedinte chegou ao jovem rapaz e disse: “Moço, me dá um trocado para eu comprar uma pinga”. O jovem não entendeu, porque ninguém entende a sinceridade. E fez cara de quem não entende português. Então o pedinte disse: “Minha vida é uma merda, eu não tenho família, não tenho dinheiro e não tenho onde morar; portanto, nada me resta além de encher a cara, concorda?” Concordou. Fez cara de quem entende português e pagou uma garrafa inteira de pinga ao pedinte. E o pedinte cantou: “Se acaso me quiseres…”, enquanto se afastava.
Afastou-se e tudo foi se afastando. Não dava mais para ouvir nem os gritos rocambolescos, e nem o pau, ou a pedra. Nada. A repartição fechou as portas, porque deu a hora. E ninguém quer fazer hora extra assim, a seco. Nada feito. Pode ir embora porque nada funciona. Se funcionasse, o fogo teria sido debelado. Debelado, cidadão. Ou, encha a cara com esse suco, essa pinga, essa pirraça, essa festa de mulheres fáceis que, no dia seguinte, não contam até vinte. Por favor. Vinte, não. Já deu a hora e não podemos mais ficar. E mande o mocinho trocar o galão de água em lugar de ficar no cafezinho. Todos sabem qual é o tipo de cafezinho que aquele descarado gosta. Ele e a secretária gorda, todas as noites, ouvindo música no radinho e fazendo festa debaixo dos lençóis.
Afastaram-se. Afastaram-se todos. Tudo, que já estava ininteligível, ficou imperceptível. Tudo se foi, tudo se apagou e sim, você está perdido nas ruas do centro de São Paulo. Não faça a besteira de entrar em qualquer lugar fétido, porque lá as lasanhas são intragáveis. Fuja enquanto é tempo. Fuja enquanto os outros estão preocupados com a própria fuga. E, se acaso me quiseres, sugeriu a moça. Nem conte até vinte e suma pelas ruas tristes da capital paulista. Em suma, suma. Suma. A oportunidade é essa. Não haverá outra. Um bombom pelo preço de um quarto de bombom. Abra o livro e se perca nas palavras, sem se preocupar com a coerência. Ria da coesão. Ria da coerção. Não sei, gordotas e velhuscas. Não sei mesmo. Só sei que não é hora de esperar a fila. Eu já fui e não ficarei mais nem vinte segundos.