"Nem intelectual, nem de esquerda", de Tião Teixeira
Nepotismo no blógui do escrevinhadeiro. Meu pai escreveu um texto que merece ser lido por todos aqueles que se consideram de esquerda (e pelos reaças assumidos também, mas eu acho que eles não aparecem por aqui). Segue:
Nem intelectual, nem de esquerda
De uns tempos para cá sinto aversão ao conhecimento puramente intelectual, e me envergonho por já ter alimentado a pretensão de me tornar, um dia, “pelo menos um pouquinho intelectual”.
Acredito que um dos principais problemas do mundo moderno seja sua crescente intelectualização. Hoje há uma tendência de valorizar, sem qualquer outro requisito, aqueles que leram muitos livros e podem falar com segurança sobre assuntos considerados cultos. Isto significa que eles estão sendo avaliados unicamente por seu intelecto, por sua capacidade de armazenar conhecimentos e por sua condição de desenvolver exposições bem articuladas sobre esses conhecimentos. Mas, e o resto, não tem importância? Não é preciso saber como eles pensam por si mesmos, quando não estão cobertos pelo verniz intelectual? Não é preciso também saber como agem? Se eles são íntegros, dignos, leais? Se têm senso do dever consigo mesmos, com aqueles com os quais se relacionam e com a sociedade? Estas perguntas são suficientes para me convencerem de que o puro conhecimento intelectual não qualifica uma pessoa.
De uns tempos para cá sinto aversão ao conhecimento puramente intelectual, e me envergonho por já ter alimentado a pretensão de me tornar, um dia, “pelo menos um pouquinho intelectual”.
Acredito que um dos principais problemas do mundo moderno seja sua crescente intelectualização. Hoje há uma tendência de valorizar, sem qualquer outro requisito, aqueles que leram muitos livros e podem falar com segurança sobre assuntos considerados cultos. Isto significa que eles estão sendo avaliados unicamente por seu intelecto, por sua capacidade de armazenar conhecimentos e por sua condição de desenvolver exposições bem articuladas sobre esses conhecimentos. Mas, e o resto, não tem importância? Não é preciso saber como eles pensam por si mesmos, quando não estão cobertos pelo verniz intelectual? Não é preciso também saber como agem? Se eles são íntegros, dignos, leais? Se têm senso do dever consigo mesmos, com aqueles com os quais se relacionam e com a sociedade? Estas perguntas são suficientes para me convencerem de que o puro conhecimento intelectual não qualifica uma pessoa.
Reconheço, no entanto, que também não a desqualifica: não é minha intenção reduzir a importância dos estudos, dos livros e do conhecimento. Questiono apenas o conhecimento “em si”, desvinculado da vida prática e da ação, que chamo de “puramente intelectual”.
Creio que nesta perspectiva o conhecimento não tenha qualquer valor, sendo até nocivo, porque, ao se manter afastado da realidade, adquire uma “vida própria”, apenas teórica e fictícia. Assim, quem o enaltece está, mesmo sem querer, alimentando uma fantasia, e conferindo ao intelectual um valor apressado e muitas vezes indevido.
Realmente não é difícil reconhecer que a valorização excessiva do puro intelecto seja um exagero e um engano, porque o situa acima de outras características e condições humanas igualmente importantes (senão precedentes em importância) que são os sentimentos, os valores morais e acima de todos eles, no meu entender, a ação.
Esta redução do ser humano ao “puro intelecto” acaba se convertendo numa forma de discriminação – porque separa as pessoas em compartimentos distintos, tendo como único critério de avaliação o que elas pensam, e não o que elas efetivamente são. Desta maneira, o particular prevalece sobre o geral: deixa-se de ser uma pessoa completa que sente, age e, claro, também pensa, para ser apenas uma pessoa que “pensa”. Nesta estranha visão, o que alguém pensa, converte-se em sua identidade, pronta para ser examinada e julgada, sem se levar em conta qualquer outro aspecto. De fato, isto é muito fácil de se observar no dia-a-dia: “é um grande intelectual, conhece a maioria dos filósofos”; “é uma pessoa culta, fala cinco línguas”; “é um cara legal, de esquerda”.
Aproveito este último exemplo, de julgamento puramente intelectual na política, para explicar por que não sou de esquerda.
A crescente intelectualização do mundo moderno vem-se enraizando (e, na minha opinião, causando danos incalculáveis, embora ainda não claramente perceptíveis) em todos os setores da atividade humana: no Ensino, no ambiente profissional, na Cultura, nos meios de comunicação, no convívio diário das pessoas e, como não poderia deixar de ser, na política. Então a política, que já padecia da ausência quase que absoluta de participação popular, agora se ressente também dessa intelectualização – um vício que, além de manter as pessoas restritas e acomodadas, as fazem acreditar que ter uma posição que as levem a pensar e a falar sobre política já seja uma forma de atuação política, ou pelo menos, uma forma de adquirir um respeitável status político.
Não estou condenando o pensar e o falar sobre política, mas a autovalorização excessiva e até a vaidade que percebo com freqüência nesta atitude, que é um reflexo do processo de intelectualização a que me refiro. Porque, assim como ocorre na cultura em geral, a intelectualização na política é discriminatória – já que não avalia a “pessoa política” (que deveria incluir sua ação), mas apenas seu “intelecto político”, como no exemplo já citado: “é um cara legal, de esquerda”.
Fico admirado como a maioria das pessoas não percebe que essa atitude puramente intelectualizada (em geral e na política) não conduz a nada realmente produtivo, a não ser a uma “orgulhosa consciência” de cada um em relação ao seu próprio “cabedal”, ou às suas “posições”; ou, quando as opiniões são discordantes, a polêmicas recorrentes, infindáveis e inúteis. Estou para ver uma polêmica em que as partes contrárias chegaram a um acordo, principalmente quando o assunto é política. (Se alguém já foi testemunha disto alguma vez, por favor, me conte). E todas essas atitudes são improdutivas e inúteis porque têm fundamento “puramente mental”, sem compromisso com qualquer esforço de autotransformação ou de transformação da realidade.
Curioso é que as posições políticas, tão ferrenhamente defendidas, não costumam durar muito tempo. Enquanto as pessoas nada fazem, a realidade segue mudando, de modo que elas se vêem obrigadas a uma contínua revisão de suas próprias verdades: aquele que ontem tinha determinada posição, hoje está em outra; o que era considerado de esquerda ontem, hoje não é mais; o que era certo, errado, justo ou injusto ontem, hoje tem avaliações diferentes. E tome polêmica sempre que essas revisões ocorrem.
Este processo causa pelo menos três danos muito graves. O primeiro, já comentado, é que o “compromisso” puramente intelectualizado não conduz a nenhuma forma de ação, ainda que as pessoas tenham a falsa sensação de que “estão agindo”, isto é, a “ilusão da ação”.
O segundo, é que a consciência estéril assim produzida acaba contribuindo, tanto para a manipulação da população mais simples (que, não sendo capaz de alcançar as elucubrações mentais, permanece atordoada e sem saber qual a direção a seguir), quanto para alimentar a guerra interminável entre as diversas facções, comprometendo assim as eventuais possibilidades de entendimento na prática política. Finalmente, o terceiro dano, talvez o pior de todos, é o efeito que essa atitude puramente mental causa nas pessoas bem intencionadas, principalmente jovens que, em algum momento da vida se dispõem a ir à luta e fazer alguma coisa para melhorar o país e o mundo. Então, elas saem à procura de “modelos” a fim de se juntar a eles (pela simples razão de que não poderiam realizar sozinhas tão grande tarefa). Mas com o tempo acabam descobrindo que seus “ídolos” não se dispõem a fazer nada para mudar coisa alguma, aferrados que estão ao seu interminável exercício mental e verbal. O resultado é que essas pessoas, ou desistem de seu sonho para tratar exclusivamente da própria vida, ou acabam se tornando novos aprendizes de “intelectualizados políticos”.
Alguém, mesmo concordando com o que eu disse até aqui, poderá argumentar com convicção que, em todo caso, ser de esquerda é melhor do que ser de direita, já que a direita representa o mal histórico da opressão do fraco pelo forte, do pobre pelo rico. De fato, é perfeitamente admissível que a atitude de esquerda se origine de um senso mais elevado de justiça, consciente ao enxergar os males do mundo e sincero em sua aspiração por uma realidade diferente e melhor. Mas o grande problema é que a coisa pára por aí lamentavelmente. Com raríssimas exceções, as pessoas de esquerda se satisfazem e se acomodam com a simples “tomada de consciência”. Então, se é verdade que a direita encarna o mal de sua histórica ação nefasta, não será exagero nem injusto dizer que a esquerda (salvo exceções) sofre do mal da “inação nefasta”, por se manter presa ao só pensar e falar, ou seja, ao puro posicionamento intelectual.
Então não posso me considerar “de esquerda”. Para que isto acontecesse, não seria suficiente que eu pensasse ou falasse “como esquerda”, mas que também tivesse uma “ação de esquerda”.
E por que eu, que aponto a inação da esquerda não poderia dar o exemplo, desenvolvendo uma ação de esquerda?
Não poderia ser de esquerda, a começar porque não sei exatamente o que significa ser de esquerda, em razão da cada vez mais vasta gamas de colorações que ela adquire. E sei menos ainda quem é realmente de esquerda hoje no Brasil. De fato, as opiniões divergem muito a respeito do que ocorre entre nós. Para alguns, ser de esquerda é combater o governo Lula e apoiar a oposição da “verdadeira esquerda”, encarnada, por exemplo, pela Heloísa Helena e o PSol.
Para outros, ser de esquerda é apoiar o governo Lula, “numa boa”, ou “apesar de tudo”. Afinal, “ele é bem melhor que o governo dos tucanos, e vem cuidando dos pobres e dos excluídos com programas importantes, como o Bolsa Família, a política de quotas, etc”.
Apesar de simpatizar com a Heloísa Helena, não posso apoiar sua proposta socialista, pois ela já se mostrou inviável. É a mesma que vinha sendo defendida pelo PT há mais de 25 anos, e que foi abandonada para possibilitar a eleição do Lula. Então o Lula e o PT abriram mão de seu compromisso histórico e tornaram-se uma espécie de “direita com tempero de esquerda” – porque aceitam as regras principais do jogo, impostas pela direita, e ficam livres para desenvolver alguns projetos e ações daquilo que consideram ser justiça social.
Assim, a alternativa de apoiar o governo Lula também é inaceitável para mim. Mesmo porque não concordo que ele seja bom, nem no aspecto social (ou seja, o tempero também é ruim). E digo que seu governo não é bom também na área social porque, apesar de atender a algumas necessidades imediatas da população carente (o que é bom), não está implantando uma política séria para o desenvolvimento humano desta população – e isto, além de não ser bom hoje, será péssimo no futuro, porque estamos em vias de instituir no Brasil uma sociedade de dependentes irrecuperáveis. Melhor teria sido fazer a coisa certa, conseqüente, mas isto seria demorado e talvez não garantisse os votos suficientes para a reeleição.
Está certo que a opção feita pelo governo foi muito bem amparada, no ano eleitoral, pelo slogan “a fome não pode esperar”. Concordo com a urgência, mas pergunto: e aquilo que há séculos tem sido a causa principal, não só da fome, mas de todos os nossos graves problemas – que são a falta de seriedade e de planejamento na política – pode continuar? Então, em matéria de apelo emocional ainda prefiro o do Jânio, dos anos 60: “Varre, varre, vassourinha / Varre, varre a bandalheira ...” Porque está mais do que provado que é impossível governar no Brasil sem compactuar com a bandalheira. Foi assim com o Fernando Henrique, que já tinha sido de esquerda. Está sendo assim com o Lula que, quando lhe convém, ainda se apresenta como sendo de esquerda.
Também sou visceralmente contra as quotas porque, entre outros motivos, não posso aceitar uma forma de “justiça” em que o benefício a determinados segmentos (considerados com razão injustiçados) seja feito em prejuízo de outras pessoas inocentes – que não têm culpa, por exemplo, pela discriminação racial no Brasil.
Acredito que todo governo populista compensa em grande parte a inação e a falta de participação política da sociedade. Se isto for mesmo verdade, quem poderá dizer quanto há de consciência, ou de “má consciência”, no apoio que o atual governo vem recebendo dos setores mais, ou menos, intelectualizados das classes média e alta, tanto da esquerda, quanto da direita?
Por estes motivos não posso ser de esquerda hoje no Brasil.
Ainda assim, existiria uma condição para que eu pudesse ser de esquerda?
Eu poderia me considerar, no máximo, “de uma esquerda ideal”. Mas isto significaria o mesmo que “não ser de esquerda alguma”. Creio que todo ser humano é, no fundo, um “socialista”. A evidência disto é que os ideais de fraternidade e justiça (representados pelo socialismo) sempre existiram, desde que o mundo é mundo. Basta lembrar da peça de Aristófanes, A revolução das mulheres, que é uma pregação ao mesmo tempo socialista e feminista (embora esses termos ainda não existissem).
O socialismo representa uma utopia ancestral que apenas adquire novos nomes com o passar do tempo. Não há, portanto, nenhuma razão séria para se depreciar o chamado socialismo utópico, ou o “socialismo cristão” da encíclica Rerum novarum, ambos do século XIX, como costumam fazer alguns setores mais intelectualizados da esquerda. Até porque o socialismo de Marx, considerado científico pela esquerda, deveria nos conduzir a uma sociedade comunista, em que o Estado já teria sido “relegado ao museu das antiguidades, assim como o machado de bronze e a roca de fiar”; e em que cada indivíduo prestaria serviços à sociedade de acordo com sua capacidade, recebendo em troca conforme sua necessidade – e isto em nada difere do que já tinha estabelecido Platão em sua República, que é uma UTOPIA.
Então, nada há de errado com a utopia e com o ideal. A humanidade necessita deles para ter sonhos e para buscar realizá-los, pois não existe outro motivo, além deste, para sua evolução – não importando muito o resultado, ou seja, o que ela alcance em cada momento ou período de sua história.
O mal está, definitivamente, em não ter ideal, porque aí não se pode fazer nada mesmo. E é esta a atitude que caracteriza a “pura intelectualização” do só pensar e nada fazer.
Em resumo, os ideais de justiça e de fraternidade sempre existiram, sempre existirão e é possível que eles nunca deixem de ser representados por alguma forma de utopia. A única diferença é que no mundo moderno o socialismo tem sido uma de suas denominações, como já afirmei. Por isto é que, em nome da fraternidade e da justiça, posso continuar sendo um idealista, pura e simplesmente, sem necessidade de me autodenominar socialista, de esquerda, ou qualquer outra coisa.
Para completar meu entendimento, devo dizer o que considero ser o grande equívoco da esquerda. Não é o fim que ela projeta (uma sociedade mais justa), mas o meio que insiste em utilizar (o confronto com a direita). Com isto, o ideal se torna prisioneiro de uma fantasia, pois a possibilidade de a esquerda sair vencedora nesse confronto é tão viável quanto à de, algum dia, o rato caçar o gato. Mas revisar esta questão seria o mesmo que jogar no lixo os princípios do materialismo dialético e da luta de classes.
Enquanto a esquerda continua batendo na mesma tecla, o mundo segue mudando, e com velocidade cada vez maior. Assim, podemos observar que hoje há um “pensamento único” global – chamado competitividade – sem ideal, sem pátria e sem limite, que rege o capitalismo e os negócios e que eventualmente beneficia a alguns, mas que no geral (e a longo prazo) está prejudicando a todos, não importando quem seja de esquerda ou de direita. E veja a máxima ironia: no momento, a principal beneficiária deste pensamento único é a China, que continua se intitulando comunista.
A única via na qual acredito é a da conciliação, que Gandhi já mostrou ser possível, pois no processo de independência da Índia ele não utilizou nenhuma forma de violência, nem mesmo a verbal. Mas, para que se chegue ao consenso é necessário que os dois lados – a direita e a esquerda – encontrem uma razão maior do que aquelas que têm movido os seres humanos e que os mantêm numa situação equivalente à do animal irracional, em que o mais forte domina o mais fraco.
A causa primordial dessa eterna discórdia também está identificada há muito tempo, com a diferença de que um dos lados a considera natural, portanto, “boa”, enquanto que o outro a considera má: trata-se do apego à propriedade dos recursos naturais e do acúmulo de bens em geral, transformados em riqueza e símbolo de poder – que tem orientado a trajetória do homem “civilizado” e que continua se impondo a todos, sem levar em conta o lado em que cada um esteja. Leo Huberman trata desta questão em sua História da riqueza do homem. Pena que depois de uma argumentação convincente e brilhante, na exposição do problema, ele apresente uma solução puramente fantasiosa, senão manipuladora.
No atual momento, estamos nos aproximando de uma inimaginável tragédia planetária, conforme vários cientistas vêm alertando há décadas e sobre a qual restam cada vez menos dúvidas – e isto representa, curiosamente, uma possibilidade para que a conciliação aconteça. Uma vez que até hoje nós, seres humanos, não soubemos encontrar os meios que nos conduzissem a uma sociedade mais justa, resta saber se conseguiremos fazer isto agora, diante de um motivo incomensuravelmente mais poderoso do que todos os da direita e da esquerda somados – que é o risco iminente de devastação da vida na Terra.
Este é, portanto, o momento de busca do consenso. Uma oportunidade inédita, num momento crítico, para que possamos atender a um apelo maior e comum a todos, que é a preservação da vida. E, deste modo, possamos também encontrar um novo caminho, onde não haveria motivo para o confronto, nem para a existência da direita e da esquerda.
A propósito, finalizo este texto lembrando a mensagem que o chefe indígena Seattle teria enviado ao presidente dos Estados Unidos, e que dá uma indicação de como poderia ser a vida do homem no futuro, sem esse apego à riqueza e ao poder (como já foi no passado).
Em meados do século XIX, o presidente americano manifestou interesse de comprar as terras dos índios para distribuí-la aos imigrantes. Era a área onde hoje se encontra a capital do estado de Washington, que se chama (ironicamente, na minha opinião) Seattle. Em sua resposta, o chefe dos índios, a quem nós, “civilizados”, chamamos de primitivos, não conseguia sequer entender por que alguém desejaria comprar sua terra. “O Presidente informa que deseja comprar a nossa terra. A idéia nos é estranha. Se não possuímos o frescor do ar e a vivacidade da água, como vocês poderão comprá-los?... O que sabemos é isto: a terra não pertence ao homem, o homem pertence à terra...”.
Tião - (09/08/07)
1 Comments:
Oi, Tô
Esse texto do seu pai é realmente mto bom, uma pancada.Intelectuais para quê: só p eles se exibirem para outros intelectuais?" É mto pouco ...
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