Cultura da Explicação
Vale a pena ler o artigo do Marcelo Coelho na Folha de hoje, 4 de julho, intitulado Cultura da Explicação (para assinantes). Acredito que valha a pena ler, tanto pelas coisas que eu gostei quanto pelas coisas que eu não gostei nas palavras do jornalista.
Marcelo Coelho começa dizendo aquilo que muitos sentiram ao saber da notícia da turminha da Barra que se divertia espancando pessoas pobres pelas ruas: "Fico tentando entender o que leva um grupo de delinqüentes de classe média a espancar, tarde da noite, uma mulher parada num ponto de ônibus..."
Primeiramente, quero dizer que gostei muito do artigo do Marcelo Coelho porque ele toca no ponto nevrálgico da questão: o evidente apartheid social em que vivemos, diante do qual, a elite brasileira se esforça ao máximo para evitar o confronto. O sonho da classe média-alta é viver tranqüilamente, sem que os pobres lhes joguem na cara o quão injusta é a nossa sociedade (e sem que as conseqüências nefastas dessa desigualdade lhes atinja, logicamente). Por isso, lá vamos nós comprar belas casas dentro de condomínios de segurança máxima, lá vamos nós blindar nossos carros, lá vamos nós freqüentar redomas do consumo, restaurantes caríssimos e casas de show que cobram um salário mínimo de ingresso. Pobre, a elite só quer ver como serviçal - e que esteja muito bem alinhado, seja muito bem educado e só dê respostas - sucintas, é claro - quando solicitado.
É por esse motivo que a elite aplaude quando os governos adotam políticas higienistas que expulsam o pobre periferia afora e dificultam o seu acesso ao espaço público. Membros da elite que chegam a criar comunidades no Orkut intituladas "Odeio pobre", como citou Marcelo Coelho em seu texto, certamente, adoram não ter que fazer nenhum tipo de serviço braçal; pessoas que nunca pegaram um ônibus adoram a comodidade de ter um motorista; "delinqüentes de classe média" que saem por aí a espancar gente pobre adoram consumir uma caipirinha feita no capricho por algum fodido que mora longe. E por aí vai.
"Mas eles pensaram que fosse uma prostituta...", alguém poderia dizer. "Isso não tem a ver com diferença de classes". Não tem? E por que eles não foram agredir putas de luxo, que existem aos montes em cidades como Rio e São Paulo? Não se trata de falso moralismo, não senhor. Corretamente, ao meu ver, Marcelo Coelho também refuta essa tese. Aqui se encerra a primeira parte do artigo, com a qual eu concordo plenamente. A segunda parte do artigo tem início, justamente, com a frase: "Bem, mas eles pensavam que estavam atacando prostitutas". Sobre isso eu já falei. Então, sigamos adiante.
"Será que esses 'meninos', esses 'garotos', esses 'adolescentes' (quanta ilusão nessas palavras!) tiveram uma educação excessivamente liberal?" Obviamente, essa questão que Marcelo Coelho lança, já na parte final do artigo, é retórica. Ele está falando sobre a cultura da explicação e exemplificando algumas delas. Mas eu farei o papel do chato que responde a perguntas retóricas: é claro que não. Ou melhor, pode até ser, mas a questão não é essa. A educação que esses "meninos" receberam é fruto dessa mentalidade segregacionista da nossa elite. Falta de repressão é a explicação fácil que as alas conservadoras da nossa sociedade dão para qualquer problema minimamente complexo, fora do arroz com feijão. Tudo isso, para proteger o cerne da questão, que é o cultivo do abismo social que os ricos deste país promovem a fim de manter as velhas regalias herdadas por uma sociedade escravocrata.
Voltando ao artigo, Marcelo Coelho enfileira uma série de perguntas retóricas e estratégias de investigação, que ele mesmo classifica como inúteis na tentativa de explicar aquela dúvida do início do texto. Conclui, então, que o problema está em sua pergunta, que nem todo absurdo que acontece na sociedade tem explicação e que nós nos alimentamos dessa cultura dos especialistas, quando psicólogos, sociólogos, antropólogos, filósofos, etc., são procurados pela imprensa para dar o carimbo acadêmico que as coberturas jornalísticas exigem. Afinal, jornalismo sério não se contenta com achismos e, os jornalistas se vêem na obrigação de fundamentar seus textos com palavras de gente do ramo.
Muito bem, eu concordo com o jornalista Marcelo Coelho que não existe explicação para tudo e que a cultura da explicação prospera entre nós. Tudo muito bem. No entanto, confesso que eu me frustrei. Frustrei-me porque, na minha opinião, houve uma inversão de focos. Fiquei com a impressão de que toda a análise social feita anteriormente assumira o pobre papel de exemplo de explicacionismo. Seria como se Marcelo Coelho tivesse dito: tudo o que eu dissera anteriormente é mais um exemplo do discurso dos especialistas. Para piorar, ele conclui que essa tentativa de se explicar tudo gera, nos "nossos 'jovens'", a necessidade de superar o discurso e de, enfim, tornarem-se inexplicáveis.
Nesse ponto, eu discordo veementemente do jornalista. Como assim? Ele está querendo me convencer de que o desejo de superar a capacidade de compreensão humana fez com que, de madrugada, esse grupo de filhinhos de papai da Barra da Tijuca espancasse uma mulher sozinha e indefesa? Com essa conclusão, Marcelo Coelho não só enfraquece a bela leitura social que fizera como, paradoxalmente, acaba dando uma resposta fácil e estúpida para aquilo que ele considera impossível de se explicar. Na tentativa de responder não respondendo, a emenda saiu pior que o soneto.
Insisto, gostei muito do artigo. Mas, confesso ter ficado com a impressão de que Marcelo Coelho mirou num pardal e acabou derrubando um avião (agora quem chegou a uma conclusão esdrúxula fui eu).
1 Comments:
Tive a mesma impressão que você. Gostei muito do artigo, mas não entendi a conclusão. Ficou estranho.
Você vai gostar do artigo da Maria Rita Kehl (ex do nosso querido cronista)que saiu no MAIS esse domingo. Passei pra você.
Beijo, Miriam
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