Homem-coisa
Ói eu aqui, pela 130ª vez. Não sei quem tem mais paciência: eu ou quem perde o tempo lendo este espaço. Mesmo assim, como diria Camila Morgado em brilhante interpretação de um poema do Vinicius de Moraes: "Subamos, subamos bem alto..." Pior que aquilo, só o Ricardo Blat fazendo pose de mano e cantando um rap. Ai, minha úlcera. Enfim, sigamos.
Hoje, nas minhas andanças pelo centro de São Paulo, eu fui testemunha, mais uma vez, de como a vida tá braba. Em frente a um restaurante por quilo, lá estava um sujeito que foi contratado para chamar a clientela, aos berros de: "Carne de primeira! Pode aproveitar!" Quando eu passei perto do sujeito, ele perguntou, sussurrando: "Ministério do Trabalho?" Veja você, o cara é contratado pelo quilão, mas não pode viver exclusivamente disso, então, continua angariando clientes que vão ao prédio do Ministério do Trabalho e, freqüentemente, precisam tirar cópia de algum documento ou foto. É claro que todo aquele mundaréu de homens-placa e homens-megafone vive de vários bicos. Certamente, esse sujeito que chama a clientela pro quilão e aborda pessoas que precisam tirar fotos e xerox, também veste uma placa pra comprar ouro, outra escrita: "Compro seu carro à vista" e, quem sabe?, ainda vende chocolate Suflair ou sete paçoquitas a R$ 1,00.
Toda vez que eu passo pela Barão de Itapetininga, do lado da saída do metrô República, eu escuto a mesma voz: "Olha o guia das agências". Aqui, reconheço a minha ignorância pra dizer: não sei que guia de agências é esse que ele vende. Agências de emprego? Mas o que me impressiona é ver a indústria da miséria funcionando a todo vapor, mesmo que todos esses subempregados sejam categoricamente ignorados por 99% dos transeuntes, todos os dias.
O centro de São Paulo é, sem dúvida, uma escultura michelangélica (deu pra entender, certo?)da realidade brasileira. São milhares de pessoas fazendo o possível pra tirar um troco de um consumidor arredio, apressado. São milhares de pessoas que sentem a miséria na pele, pessoas que já se acostumaram a ser vistas como uma placa, ou como um som de auto-falante. Essas pessoas aceitaram se transformar em coisas, porque é isso que elas são pra nós. Elas são apenas placas, ou megafones. Elas são apenas ruídos, sejam visuais ou sonoros. O centro de São Paulo não me deprime. Ao contrário, ele me mantém com os dois pés na realidade. A realidade é deprimente? Bem-vindo ao barco, companheiro.
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