sexta-feira, setembro 01, 2006

Veneza revisitada

Segue abaixo uma preciosa dica de leitura, por Viviane Pepice que, por acaso, também vem a ser a mulher da minha vida:

Sou aquele tipo de pessoa que faz listas até para ir ao supermercado. E sinto um prazer inconfessável em ir “ticando” as tarefas já cumpridas das minhas inesgotáveis listas. E, o fato de desrespeitá-las, ocasionalmente, não é um motivo para deixar de fazê-las. Muito pelo contrário: faço pequenos atalhos e desvios e anexos das minhas próprias listas. Novas listas dentro de listas, embutidas em velhas listas. É quase metalingüístico.

Recentemente, um pouco incomodada com certas lacunas literárias em minha formação, resolvi fazer uma lista dos próximos vinte e um livros que pretendia ler. O que havia em comum entre aqueles vinte e um títulos era o fato de terem sido escritos por grandes escritores dos quais eu não havia lido nada, ou quase nada. Somente assim para unirmos James Joyce, Flaubert, Tolstoi e Faulkner em cinqüenta centímetros quadrados sem muitas baixas, mortos ou feridos.

Depois de “Avalovara”, de Osman Lins e “Dom Quixote”, de Cervantes, o terceiro título da lista era “As cidades invisíveis”, de Italo Calvino. E eis aqui, já no terceiro parágrafo deste ensaio despretensioso, o verdadeiro assunto sobre o qual quero falar.

“As cidades invisíveis” é um livro mais conhecido do que propriamente lido, entre literatos e simpatizantes. Eu já tinha ouvido centenas de referências a este livro, que por outras centenas de vezes passou pelas minhas mãos em livrarias, bibliotecas e afins, sem que ao menos soubesse o seu assunto. Achava que falava sobre cidades. Sobre cidades invisíveis. Quando soube que o livro continha as descrições das cidades, relatadas por Marco Polo ao grande imperador dos tártaros Kublai Khan, confesso que fiquei ainda menos interessada. Puro preconceito.

Fui arrebatada por Calvino e li “As cidades invisíveis” em três dias. Para descobrir que o livro não fala sobre cidades. As cidades são apenas a senha para que se possa penetrar no sutil universo construído por Calvino. O livro fala sobre o homem e sua interminável viagem. O homem que avança com a cabeça voltada para trás, porque aquilo que procura está sempre diante de si e, ainda que se trate de um passado, é um passado que muda na medida em que se avança. Sim, o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado. Viajamos para reviver nosso passado e reencontrar nosso futuro.

Das cinqüenta e cinco cidades descritas minuciosamente por Marco Polo, resta uma que este jamais menciona. Veneza, a cidade onde nasceu, suas origens. Porém, é inegável que Veneza está implícita na descrição de todas as demais cidades. Só não é mencionada porque as margens da memória, uma vez fixadas com palavras, cancelam-se. E Marco Polo receava perder Veneza.

Assim, Marco Polo avançava para não perder o ponto de partida, para não se perder de si mesmo, de quem se era há algum tempo atrás. E sua viagem, portanto, era uma viagem através da memória. As cidades de Calvino são um pretexto para se falar sobre os homens que nelas habitam e sobre os homens que as visitam. E sobre quão longe tais homens são capazes de ir para se desfazer de uma carga de nostalgia...

No mais, eu e minha lista literária vamos indo muito bem. Já finalizamos o terceiro título com apenas três desvios imprevistos. Se continuarmos nesta toada, iremos emplacar quarenta e dois! E agora, peço licença, pois Guimarães Rosa está me aguardando em meu quarto e parece estar com bastante pressa.

Viviane Pepice

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Vivi! Como pode ter uma memória tão boa?
Eu não seria capaz de dizer os autores dos últimos 5 livros que li!
Gincobiloba(?), talvez seja a solução da minha falta de memória!
Mas uma coisa não esquecerei.
As Cidades Invisíveis será minha próxima diversão.
Obrigado pela dica.
abraço, Butantã

9:24 AM  
Anonymous Anônimo said...

Olá, Butantã!
Não sei se você revisita antigas postagens mas, caso isso aconteça, obrigado pelo comentário! E leia "As cidades invisíveis" bem devagarinho, saboreando cada uma das curtas descrições das cidades e refletindo bastante. E se, depois, quiser discutir o livro, vou adorar!
Beijinhos, Vivi

8:58 PM  

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