Veneza revisitada
Segue abaixo uma preciosa dica de leitura, por Viviane Pepice que, por acaso, também vem a ser a mulher da minha vida:
Sou aquele tipo de pessoa que faz listas até para ir ao supermercado. E sinto um prazer inconfessável em ir “ticando” as tarefas já cumpridas das minhas inesgotáveis listas. E, o fato de desrespeitá-las, ocasionalmente, não é um motivo para deixar de fazê-las. Muito pelo contrário: faço pequenos atalhos e desvios e anexos das minhas próprias listas. Novas listas dentro de listas, embutidas em velhas listas. É quase metalingüístico.
Recentemente, um pouco incomodada com certas lacunas literárias em minha formação, resolvi fazer uma lista dos próximos vinte e um livros que pretendia ler. O que havia em comum entre aqueles vinte e um títulos era o fato de terem sido escritos por grandes escritores dos quais eu não havia lido nada, ou quase nada. Somente assim para unirmos James Joyce, Flaubert, Tolstoi e Faulkner em cinqüenta centímetros quadrados sem muitas baixas, mortos ou feridos.
Depois de “Avalovara”, de Osman Lins e “Dom Quixote”, de Cervantes, o terceiro título da lista era “As cidades invisíveis”, de Italo Calvino. E eis aqui, já no terceiro parágrafo deste ensaio despretensioso, o verdadeiro assunto sobre o qual quero falar.
“As cidades invisíveis” é um livro mais conhecido do que propriamente lido, entre literatos e simpatizantes. Eu já tinha ouvido centenas de referências a este livro, que por outras centenas de vezes passou pelas minhas mãos em livrarias, bibliotecas e afins, sem que ao menos soubesse o seu assunto. Achava que falava sobre cidades. Sobre cidades invisíveis. Quando soube que o livro continha as descrições das cidades, relatadas por Marco Polo ao grande imperador dos tártaros Kublai Khan, confesso que fiquei ainda menos interessada. Puro preconceito.
Fui arrebatada por Calvino e li “As cidades invisíveis” em três dias. Para descobrir que o livro não fala sobre cidades. As cidades são apenas a senha para que se possa penetrar no sutil universo construído por Calvino. O livro fala sobre o homem e sua interminável viagem. O homem que avança com a cabeça voltada para trás, porque aquilo que procura está sempre diante de si e, ainda que se trate de um passado, é um passado que muda na medida em que se avança. Sim, o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado. Viajamos para reviver nosso passado e reencontrar nosso futuro.
Das cinqüenta e cinco cidades descritas minuciosamente por Marco Polo, resta uma que este jamais menciona. Veneza, a cidade onde nasceu, suas origens. Porém, é inegável que Veneza está implícita na descrição de todas as demais cidades. Só não é mencionada porque as margens da memória, uma vez fixadas com palavras, cancelam-se. E Marco Polo receava perder Veneza.
Assim, Marco Polo avançava para não perder o ponto de partida, para não se perder de si mesmo, de quem se era há algum tempo atrás. E sua viagem, portanto, era uma viagem através da memória. As cidades de Calvino são um pretexto para se falar sobre os homens que nelas habitam e sobre os homens que as visitam. E sobre quão longe tais homens são capazes de ir para se desfazer de uma carga de nostalgia...
No mais, eu e minha lista literária vamos indo muito bem. Já finalizamos o terceiro título com apenas três desvios imprevistos. Se continuarmos nesta toada, iremos emplacar quarenta e dois! E agora, peço licença, pois Guimarães Rosa está me aguardando em meu quarto e parece estar com bastante pressa.
Viviane Pepice
Sou aquele tipo de pessoa que faz listas até para ir ao supermercado. E sinto um prazer inconfessável em ir “ticando” as tarefas já cumpridas das minhas inesgotáveis listas. E, o fato de desrespeitá-las, ocasionalmente, não é um motivo para deixar de fazê-las. Muito pelo contrário: faço pequenos atalhos e desvios e anexos das minhas próprias listas. Novas listas dentro de listas, embutidas em velhas listas. É quase metalingüístico.
Recentemente, um pouco incomodada com certas lacunas literárias em minha formação, resolvi fazer uma lista dos próximos vinte e um livros que pretendia ler. O que havia em comum entre aqueles vinte e um títulos era o fato de terem sido escritos por grandes escritores dos quais eu não havia lido nada, ou quase nada. Somente assim para unirmos James Joyce, Flaubert, Tolstoi e Faulkner em cinqüenta centímetros quadrados sem muitas baixas, mortos ou feridos.
Depois de “Avalovara”, de Osman Lins e “Dom Quixote”, de Cervantes, o terceiro título da lista era “As cidades invisíveis”, de Italo Calvino. E eis aqui, já no terceiro parágrafo deste ensaio despretensioso, o verdadeiro assunto sobre o qual quero falar.
“As cidades invisíveis” é um livro mais conhecido do que propriamente lido, entre literatos e simpatizantes. Eu já tinha ouvido centenas de referências a este livro, que por outras centenas de vezes passou pelas minhas mãos em livrarias, bibliotecas e afins, sem que ao menos soubesse o seu assunto. Achava que falava sobre cidades. Sobre cidades invisíveis. Quando soube que o livro continha as descrições das cidades, relatadas por Marco Polo ao grande imperador dos tártaros Kublai Khan, confesso que fiquei ainda menos interessada. Puro preconceito.
Fui arrebatada por Calvino e li “As cidades invisíveis” em três dias. Para descobrir que o livro não fala sobre cidades. As cidades são apenas a senha para que se possa penetrar no sutil universo construído por Calvino. O livro fala sobre o homem e sua interminável viagem. O homem que avança com a cabeça voltada para trás, porque aquilo que procura está sempre diante de si e, ainda que se trate de um passado, é um passado que muda na medida em que se avança. Sim, o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado. Viajamos para reviver nosso passado e reencontrar nosso futuro.
Das cinqüenta e cinco cidades descritas minuciosamente por Marco Polo, resta uma que este jamais menciona. Veneza, a cidade onde nasceu, suas origens. Porém, é inegável que Veneza está implícita na descrição de todas as demais cidades. Só não é mencionada porque as margens da memória, uma vez fixadas com palavras, cancelam-se. E Marco Polo receava perder Veneza.
Assim, Marco Polo avançava para não perder o ponto de partida, para não se perder de si mesmo, de quem se era há algum tempo atrás. E sua viagem, portanto, era uma viagem através da memória. As cidades de Calvino são um pretexto para se falar sobre os homens que nelas habitam e sobre os homens que as visitam. E sobre quão longe tais homens são capazes de ir para se desfazer de uma carga de nostalgia...
No mais, eu e minha lista literária vamos indo muito bem. Já finalizamos o terceiro título com apenas três desvios imprevistos. Se continuarmos nesta toada, iremos emplacar quarenta e dois! E agora, peço licença, pois Guimarães Rosa está me aguardando em meu quarto e parece estar com bastante pressa.
Viviane Pepice
2 Comments:
Vivi! Como pode ter uma memória tão boa?
Eu não seria capaz de dizer os autores dos últimos 5 livros que li!
Gincobiloba(?), talvez seja a solução da minha falta de memória!
Mas uma coisa não esquecerei.
As Cidades Invisíveis será minha próxima diversão.
Obrigado pela dica.
abraço, Butantã
Olá, Butantã!
Não sei se você revisita antigas postagens mas, caso isso aconteça, obrigado pelo comentário! E leia "As cidades invisíveis" bem devagarinho, saboreando cada uma das curtas descrições das cidades e refletindo bastante. E se, depois, quiser discutir o livro, vou adorar!
Beijinhos, Vivi
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